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Agradecimentos especiais a Klaus. 12 page

O toque. Esquece as prostitutas, os clientes, sua mãe e seu pai, agora está na escuridão total. Passou a tarde inteira procurando o que poderia dar para um homem que lhe devolvia a dignidade, lhe fazia entender que a busca da alegria é mais importante do que a necessidade da dor.

Eu gostaria de lhe dar a felicidade de ensinar- me algo novo, como ontem me ensinou sobre sofrimento, prostitutas de rua, prostitutas sagradas. Vi que é feliz quando está me fazendo aprender algo, então que me faça aprender, que me guie. Eu gostaria de saber como se chega até o corpo, antes de se chegar na alma, na penetração, no orgasmo.

Estende o braço em sua direção, e pede que ele faça o mesmo. Sussurra poucas palavras, dizendo que aquela noite, naquele lugar de ninguém, gostaria que ele descobrisse sua pele, a fronteira entre ela e o mundo. Pede que a toque, que a sinta com suas mãos, porque os corpos se entendem, embora nem sempre as almas estejam de acordo. Ele começa a tocá- la, ela também o toca, e ambos, como se tivessem combinado tudo antes, evitam as partes do corpo em que a energia sexual aflora mais rapidamente.

Os dedos tocam o seu rosto, ela sente um pouco o cheiro de tinta, um cheiro que sempre permanecerá ali, por mais que ele lave aquelas mãos milhares, milhões de vezes, que estava ali quando nasceu, quando ele deve ter visto a primeira árvore, a primeira casa, e ter decidido desenhá - la em seus sonhos. Também ele deve estar sentindo algum cheiro em sua mão, mas ela não sabe o que é, e não quer perguntar, porque neste momento tudo é corpo, o resto é silêncio.

Acaricia, e sente-se acariciada. Poderia ficar assim a noite inteira, porque é gostoso, não vai terminar necessaria mente em sexo - e neste momento, justamente porque não tem obrigação, ela sente um calor entre as pernas, e sabe que ficou úmida. Vai chegar a hora em que ele tocará o seu sexo, descobrirá que está molhado, não sabe se é bom ou ruim, mas é assim que seu corpo está reagindo, e não pretende dizer para ir por aqui, ir por ali, mais devagar, mais rápido. As mãos do homem agora estão tocando as suas axilas, os pêlos de seus braços se eriçam, ela tem vontade de empurrá- las dali - mas é bom, embora talvez seja dor o que esteja sentindo. Faz o mesmo nele, nota que as axilas têm uma textura diferente, talvez por causa do desodorante que ambos usam, mas no que está pensando? Não deve pensar. Deve tocar, isso é tudo.

Os dedos dele traçam círculos em torno do seu seio, como um animal que espreita.

Ela quer que se movam mais rápido, que toque logo os bicos, porque o seu pensamento está indo mais veloz que as mãos dele, mas, talvez sabendo disso, ele provoca, delicia-se, e tarda uma infinidade até chegar ali. Estão duros, ele brinca um pouco, e aquilo deixa o seu corpo mais arrepiado, e seu sexo mais quente e mais úmido. Agora ele passeia por seu ventre, desvia-se e vai até as pernas, os pés, sobe e desce as mãos pelo lado interno de suas coxas, sente o calor, mas não se aproxima, é um toque doce, leve, e quanto mais leve, mais alucinante.



Ela faz o mesmo, mantendo as mãos quase flutuando, tocando apenas os cabelos das pernas, e também sente o calor, quando se aproxima do sexo. De repente é como se tivesse recuperado misteriosamente a virgindade, como se descobrisse pela primeira vez o corpo de um homem. Toca-o. Não está duro como imaginava, e ela está toda molhada, isso é injusto, mas talvez o homem precise de mais tempo, sei lá.

E começa a acariciá- lo como só as virgens sabem fazer, porque as prostitutas já se esqueceram. O homem reage, o sexo começa a crescer em suas mãos, e ela aumenta lentamente a pressão, sabendo agora onde deve tocar, mais na parte de baixo que na de cima, deve envolvê- lo com os dedos, puxar a pele para trás, em direção ao corpo. Agora ele está excitado, muito excitado, toca os lábios de sua vagina, mantendo a suavidade, e ela tem vontade de pedir que seja mais forte,, coloque os dedos lá dentro, na parte de cima. Mas ele não faz isso, espalha no clitóris um pouco do líquido que jorra de seu ventre, e de novo faz os mesmos movimentos circulares que fez nos seus mamilos. Aquele homem a toca como se fosse ela mesma.

Uma das mãos dele subiu de novo para o seu seio, como é bom, como gostaria que ele a abraçasse agora. Mas não, estão descobrindo o corpo, têm tempo, precisam de muito tempo. Podiam fazer amor agora, seria a coisa mais natural do mundo, e possivelmente seria bom, mas tudo aquilo é tão novo, precisa controlar-se, não quer estragar tudo.

Lembra-se do vinho que tomaram na primeira noite, lentamente, sorvendo cada gole, sentindo que a esquentava, a fazia ver o mundo diferente, a deixava mais solta e mais em contato com a vida.

Deseja também beber aquele homem, e então poderá esquecer para sempre o mau vinho, que se toma de um gole, dá uma sensação de embriaguez, mas termina em dor de cabeça e um buraco na alma.

Ela pára, suavemente entrelaça seus dedos nas mãos dele, escuta um gemido e tem vontade de gemer também, mas se controla, sente que aquele calor se espalha por todo o seu corpo, o mesmo deve estar acontecendo com ele. Sem orgasmo a energia se dispersa, vai até o cérebro, não a deixa pensar em mais nada a não ser em ir até o final, mas é isso que ela quer - parar, parar no meio, espalhar o prazer por todo o corpo, invadir a mente, renovar o compromisso e o desejo, voltar a ser virgem.

Tira suavemente a venda dos seus próprios olhos, e faz o mesmo com ele. Acende a luz da mesa-de-cabeceira. Os dois estão nus, e não sorriem, apenas se olham. Eu sou o amor, eu sou a música, pensa ela. Vamos dançar.

Mas não diz nada disso: conversam alguma coisa trivial, quando vamos nos encontrar de novo, ela marca uma data, talvez daqui a dois dias. Ele diz que gostaria que o acompanhasse em uma exposição, ela vacila. Isso significaria conhecer seu mundo, seus amigos, e o que vão dizer, o que vão pensar.

Diz que não. Mas ele percebe que sua vontade era dizer sim, então insiste, usando alguns argumentos tolos, mas que fazem parte da dança que estão dançando agora, ela termina por ceder, porque era isso que queria. Marca um lugar para se encontrarem, no mesmo café a que foram no primeiro dia. Ela diz que não, os brasileiros são supersticiosos, e não devem se encontrar no lugar onde se viram no primeiro dia, porque aquilo pode fechar um ciclo, e acabar tudo.

Ele diz que está contente, porque ela não quer fechar este ciclo. Decidem por uma igreja de onde se pode ver a cidade, e que está no Caminho de Santiago, parte da misteriosa peregrinação que os dois têm feito desde que se encontraram.

 

Do diário de Maria, na véspera de comprar sua passagem de avião para o Brasil: Era uma vez um pássaro. Adornado com um par de asas perfeitas e plumas reluzentes, coloridas e maravilhosas. Enfim, um animal feito para voar livre e solto do céu, alegrar quem o observasse.

Um dia, uma mulher viu este pássaro e se apaixonou por ele. Ficou olhando o seu vôo com a boca aberta de espanto, o coração batendo mais rápido, os olhos brilhando de emoção. Convidou-o para voar com ela, e os dois viajaram pelo céu em completa harmonia.

Ela admirava, venerava, celebrava o pássaro.

Mas então pensou: talvez ele queira conhecer algumas montanhas distantes! E a mulher sentiu medo. Medo de nunca mais sentir aquilo com outro pássaro. E sentiu inveja, inveja da capac idade de voar do pássaro.

E sentiu-se sozinha.

E pensou: "Vou montar uma armadilha. A próxima vez que o pássaro surgir, ele não mais partirá."

O pássaro, que também estava apaixonado, voltou no dia seguinte, caiu na armadilha, e foi preso na gaiola.

Todos os dias ela olhava o pássaro. Ali estava o objeto de sua paixão, e ela mostrava para suas amigas, que comentavam: Mas você é uma pessoa que tem tudo." Entretanto, uma estranha transformação começou a processar-se: como tinha o pássaro, e já não precisava conquistá- lo, foi perdendo o interesse. O pássaro, sem poder voar e exprimir o sentido de sua vida, foi definhando, perdendo o brilho, ficou feio - e a mulher já não prestava mais atenção nele, apenas na maneira como o alimentava e como cuidava de sua gaiola.

Um belo dia, o pássaro morreu. Ela ficou profundamente triste, e vivia pensando nele.

Mas não se lembrava da gaiola, recordava apestas o dia em que o vira pela primeira vez, voando contente entre as nuvens.

Se ela observasse a si mesma, descobriria que aquilo que a emocionava tanto no pássaro era a sua liberdade, a energia das asas em movimento, não o seu corpo físico.

Sem o pássaro, sua vida também perdeu o sentido, e a morte veio bater à sua porta.

"Por que você veio perguntou à morte.

"Para que você possa voar de novo com ele nos céus'; respondeu a morte. "Se o tivesse deixado partir e voltar sempre, você o amaria e o admiraria ainda mais, - entretanto, agora você precisa de mim para poder encontrá-lo de novo."

Começou o dia fazendo algo que ensaiara durante todos aqueles meses: entrar em uma agência de viagens e comprar uma passagem para o Brasil, na data que marcara em seu calendário.

Agora faltavam apenas mais duas semanas na Europa. A partir daquele momento, Genève seria o rosto de um homem que amo u, e por quem fora amada. A Rue de Berne seria um nome, homenagem à capital da Suíça. Lembraria do seu quarto, do lago, da língua francesa, das loucuras que uma menina de vinte e três anos (seu aniversário fora na véspera) é capaz de fazer - até entender que há um limite.

Não iria prender o pássaro, ou pedir que a acompanhasse ao Brasil; ele era a única coisa verdadeiramente pura que lhe havia acontecido. Um pássaro como esse tem que voar livre, alimentar-se da saudade de um tempo em que voou junto com alguém. E ela também era um pássaro; ter Ralf Hart ao seu lado seria lembrar para sempre dos dias no Copacabana. E isso era seu passado, não o seu futuro.

Decidiu que ia dizer "adeus" apenas uma vez, quando chegasse o momento da partida; não ficaria sofrendo a cada lembrança de que "em breve já não estarei mais aqui". Portanto, enganou seu coração e caminhou por Genève naquela manhã como tivesse sempre passeado por aquelas ruas, a colina, o Caminho de Santiago, a ponte de Montblanc, os bares que costumava frequentar. Acompanhou o vôo das gaivotas no rio, os comerciantes recolhendo as barracas, as pessoas saindo dos seus escritórios para almoçar, a cor e o gosto da maçã que estava comendo, os aviões pousando a distância, o arco-íris na coluna de água que subia do meio do lago, a alegria tímida e escondida de todos que passavam por ela, os olhares de desejo, os olhares sem expressão, os olhares. Vivera quase um ano em uma cidade pequena, como tantas outras cidades pequenas no mundo, e se não fosse pela arquitetura peculiar e pelo excesso de letreiros de bancos, ela podia estar no interior do Brasil. Havia feira. Havia mercado. Havia donas de casa discutindo o preço. Havia estudantes que haviam deixado a aula antes da hora, talvez com alguma desculpa sobre pai e mãe doentes, e agora passeavam e se beijavam nas margens do rio. Havia gente que se sentia em casa, e gente que se sentia estrangeira. Havia jornais que falavam de escândalos, e respeitáveis revistas para homens de negócios que, por sinal, só eram vistos lendo jornais sobre escândalos.

Foi até a biblioteca devolver o manual sobre administração de fazendas. Não tinha entendido nada, mas o livro lhe recordara, nos momentos em que pensava ter perdido o controle de si mesma e de seu destino, qual era o objetivo de sua vida. Tinha sido um companheiro silencioso, com sua capa amarela sem desenhos, uma série de gráficos, mas, sobretudo, tinha sido um farol nas noites escuras das semanas mais recentes.

Sempre fazendo planos para o futuro. E sempre sendo surpreendida pelo presente, dizia a si mesma. Pensava em como havia descoberto a si mesma através da independência, do desespero, do amor, da dor, para logo encontrar-se com o amor de novo - e gostaria que as coisas terminassem por ali.

O mais curioso disso tudo é que, enquanto algumas de suas companheiras de trabalho falavam das virtudes e do êxtase por estar com certos homens na cama, ela jamais tinha se descoberto melhor ou pior através do sexo. Não resolvera seu problema, era incapaz de ter um orgasmo com a penetração, e vulgarizara tanto o ato sexual que talvez não conseguisse nunca mais encontrar no "abraço do reencontro" -como Ralf Hart o chamava - o fogo e a alegria que buscava.

Ou talvez (como costumava pensar de vez em quando) sem amor fosse impossível ter qualquer prazer na cama, como diziam as mães, os pais, os livros românticos.

A bibliotecária, normalmente séria (e sua única amiga, embora jamais lhe tivesse dito isso), estava de bom humor. Atendeu-a na hora do almoço e convidou-a para compartilhar um sanduíche. Maria agradeceu e disse que tinha acabado de almoçar.

- Você demorou muito para ler.

- Não entendi nada.

- Você se lembra do que me pediu uma vez?

Não, não lembrava, mas depois que viu o sorriso malicioso no ar da mulher à sua frente, imaginou o que teria sido. Sexo.

- Sabe, desde que você veio aqui procurando por este tipo de assunto, eu resolvi fazer um levantamento do que tínhamos. Não era muito, e como precisamos educar nossa juventude, eu encomendei alguns. Assim, não precisam aprender da pior maneira possível, com prostitutas, por exemplo.

A bibliotecária apontou para uma pilha de livros em um canto, todos cuidadosamente encapados com papel pardo.

- Ainda não tive tempo de classificá-los, mas andei dando uma olhada e fiquei horrorizada com o que descobri.

Bem, já podia adivinhar o que a mulher diria: posições constrangedoras, sadomasoquismo, e coisas deste tipo. Melhor dizer que tinha que voltar a trabalhar (não sabia onde tinha dito que trabalhava, se em um banco, ou em uma loja - mentira dava muito trabalho, ela se esquecia sempre).

Agradeceu, fez sinal de que ia sair, mas a outra comentou:

- Você também ia ficar horrorizada. Por exemplo: sabia que o clitóris é uma invenção recente?

Invenção? Recente? Ainda esta semana alguém tinha tocado no seu, como se sempre estivesse ali, e como se aquelas mãos conhecessem bem o terreno que estava sendo explorado - apesar da escuridão completa.

- Foi oficialmente aceito em 1559, depois que um médico, Realdo Columbo, publicou um livro chamado De re anatomica. Durante mil e quinhentos anos da era cristã, ele foi oficialmente ignorado. Columbo o descreve, em seu livro, como "uma coisa bonita e útil", você acredita?

As duas riram.

- Dois anos depois, em 1561, outro médico, Gabrielle Fallopio, disse que a

"descoberta" tinha sido dele. Veja só! Dois homens, italianos, claro, que entendem do assunto, discutindo quem havia oficialmente colocado o clitóris na história do mundo!

Aquela conversa era interessante, mas Maria não queria pensar no assunto, principalmente porque sentia de novo 0 líquido escorrendo, e o sexo ficando molhado -só de lembrar do toque, das vendas, das mãos que passeavam no seu corpo. Não, não estava morta para o sexo, aquele homem a havia resgatado de alguma maneira. Que bom continuar viva.

A bibliotecária, porém, estava entusiasmada:

- Mesmo depois de "descoberto", continuou a ser desrespeitado - disse ela, parecendo uma perita em clitoriologia, ou seja lá qual fosse o nome desta ciência. -As mutilações que lemos hoje nos jornais, praticadas por certas tribos da África que ainda tiram da mulher o direito ao prazer, não são nenhuma novidade. Aqui mesmo na Europa, no século XIX, ainda se faziam operações para eliminar o clitóris, acreditando que naquela pequena e insignificante parte da anatomia feminina estava toda a fonte de histeria, epilepsia, tendência ao adultério e incapacidade de ter filhos.

Maria estendeu a mão para despedir -se, mas a bibliotecária não dava sinais de cansaço.

- Pior ainda, nosso querido Freud, o descobridor da psicanálise, dizia que o orgasmo feminino, em uma mulher normal, deve mover-se do clitóris para a vagina. Seus mais fiéis seguidores, desenvolvendo esta tese, passaram a afirmar que o fato de manter o prazer sexual concentrado no clitóris era um sinal de infantilidade, ou, o que é pior, de bissexualidade.

"E no entanto, como rodas nós sabemos, é muito difícil ter um orgasmo apenas com a penetração. É bom ser possuída por um homem, mas o prazer está naquele grãozinho ali, descoberto por um italiano!"

Distraída, Maria reconheceu que tinha o problema diagnosticado por Freud: ainda era infantil, seu orgasmo não tinha se deslocado para a vagina. Ou será que Freud estava errado?

- E o ponto G, o que você acha?

- A senhora sabe onde fica?

A mulher ficou corada, tossiu, mas teve coragem de responder:

- Logo que você entra, no primeiro andar, janela dos fundos.

Genial! Descrevera a vagina como um edifício! Talvez tivesse lido aquela explicação em um livro para meninas: depois que alguém bater à porta e entrar, vai descobrir todo um universo dentro do próprio corpo. Sempre que se masturbava, preferia o tal ponto G ao clitóris, já que este lhe dava uma certa aflição, um prazer misturado com agonia, algo angustiante.

Ia sempre para o primeiro andar, janela dos fundos!

Vendo que a mulher não ia parar de falar - talvez tivesse acabado de descobrir nela uma cúmplice de sua própria sexualidade perdida -, acenou com a mão, saiu, e procurou continuar se concentrando em qualquer bobagem, porque não era dia de pensar em despedidas, clitóris, virgindade refeita, ou ponto G. Prestou atenção nos ruídos - sinos que tocavam, cachorros latindo, o tram (que era como eles chamavam os bondes locais) rangendo nos trilhos, os passos, a respiração, os letreiros que ofereciam tudo.

Já não tinha vontade de voltar ao Copacabana. Mesmo assim sentia-se na obrigação de levar seu trabalho até o final, embora desconhecesse a verdadeira razão - afinal de contas, já tinha conseguido economizar o suficiente. Durante aquela tarde, podia fazer algumas compras, conversar com um ge rente de banco que era seu cliente mas que havia prometido ajudá- la com suas economias, tomar um café, mandar pelo correio algumas roupas que não caberiam na bagagem. Estranho, estava um pouco triste, não conseguia entender; talvez porque ainda faltassem duas semanas, precisava fazer passar o tempo, olhar a cidade com outros olhos, alegrar-se por ter vivido tudo aquilo.

Chegou a um cruzamento que já atravessara centenas de vezes; dali podia ver o lago, a coluna de água e - no meio do jardim que se estendia do outro lado da calçada - o belo relógio de flores, um dos símbolos da cidade, e ele não a deixava mentir, porque...

De repente, o tempo, o mundo ficou imóvel.

Que história era aquela de virgindade recém-recuperada, que pensava desde que acordara?

O mundo parecia congelado, aquele segundo não passava nunca, ela estava diante de algo muito sério e muito importante em sua vida, não podia esquecer, não podia fazer como os seus sonhos noturnos; sempre prometia anotá-los, e nunca se lembrava...

"Não pense em nada. O mundo parou. O que está acontecendo?"

CHEGA!

O pássaro, a linda história do pássaro que acabara de escrever, era sobre Ralf Hart?

Não, era sobre ela mesma!

PONTO FINAL!

Eram 11:11h da manhã, e ela estava parando naquele momento. Era uma estrangeira em seu próprio corpo, estava redescobrindo a virgindade recém-recuperada, mas seu renascer era tão frágil, que se continuasse ali estaria perdida para sempre. Experimentara o céu talvez, o inferno com certeza, mas a aventura chegava ao final. Não podia esperar duas semanas, dez dias, uma semana - precisava ir embora correndo - porque, ao olhar aquele relógio cheio de flores, com turistas tirando fotografias e crianças brincando ao redor, acabara de descobrir o motivo de sua tristeza.

E o motivo era o seguinte: não queria voltar.

E a razão não era Ralf Hart, a Suíça, a aventura. A verdadeira razão era simples demais: dinheiro.

Dinheiro! Um pedaço de papel especial, pintado com cores sóbrias, que todo mundo dizia valer alguma coisa - e ela acreditava, todos acreditavam nisso - até o momento em que fosse com uma montanha daquele papel a um banco, um respeitável, tradicional, secretíssimo banco suíço, e pedisse: "Posso adquirir um pouco de horas para minha vida?"

"Não, senhora, não vendemos isso; só compramos."

Maria foi despertada de seu delírio pela freada de um carro, a reclamação de um motorista, e um velhinho sorridente, falando inglês, e pedindo que recuasse - o sinal estava fechado para pedestres.

"Bem, acho que descobri algo que todo mundo deve saber."

Mas não sabiam: olhou à sua volta, pessoas andando de cabeça baixa, correndo para ir ao trabalho, à escola, a uma agência de empregos, à Rue de Berne, sempre dizendo: "Posso esperar um pouco mais. Tenho um sonho, mas ele não precisa ser vivido hoje, porque preciso ganhar dinheiro." Claro, seu emprego era amaldiçoado - mas no fundo tratava-se apenas de vender seu tempo, como todo mundo. Fazer coisas de que não gostava, como todo mundo. Aturar gente insuportável, como todo mundo. Entregar seu precioso corpo e sua preciosa alma em nome de um futuro que nunca chegava, como todo mundo. Dizer que ainda não tinha o bastante, como todo mundo. Aguardar só mais um pouquinho, como todo mundo. Esperar mais um pouco, ganhar algo mais, deixar para realizar seus desejos depois, no momento estava muito ocupada, tinha uma oportunidade diante de si, clientes que a esperavam, que eram fiéis, que podiam pagar de trezentos e cinqüenta até mil francos por noite.

E pela primeira vez na vida, apesar de todas as coisas boas que podia comprar com o dinheiro que ganhasse - quem sabe, apenas mais um ano? -, ela resolveu consciente, lúcida e propositadamente deixar passar uma oportunidade.

Maria esperou que o sinal abrisse, atravessou a rua, parou diante do relógio de flores, pensou em Ralf, sentiu de novo o seu olhar de desejo na noite em que abaixara parte de seu vestido, sentiu suas mãos lhe tocando os seios, o sexo, o rosto, ficou molhada, olhou para a imensa coluna de água a distância, e sem precisar tocar uma só parte de seu corpo - teve um orgasmo ali, na frente de todo mundo.

Ninguém notou; todos estavam muito, muito ocupados.

Nyah, a única de suas colegas com que tinha uma relação próxima do que se poderia chamar de amizade, chamou-a assim que entrou. Estava sentada com um oriental, e os dois riam.

- Veja isso - disse a Maria. - Veja o que quer que eu faça com ele!

O oriental, fazendo um olhar cúmplice e mantendo o sorriso nos lábios, abriu a tampa de uma espécie de caixa de charutos. De longe, Milan espichou o olho para ver se não se tratava de seringas ou drogas. Não, era apenas aquela coisa que nem ele entendia direito como funcionava, mas não era nada de especial.

- Parece coisa do século passado! - disse Maria.

- É coisa do século passado - concordou o oriental, indignado com a ignorância do comentário. - Este aí tem mais de cem anos, e custou uma fortuna.

O que Maria via era uma série de válvulas, uma manivela, circuitos elétricos, pequenos contatos de metal, pilhas. Parecia o interior de um antigo aparelho de rádio, com dois fios saindo, em cujas extremidades estavam pequenos bastões de vidro, do tamanho de um dedo. Nada que pudesse custar uma fortuna.

- Como funciona?

Nyah não gostou da pergunta de Maria. Embora confiasse na brasileira, as pessoas mudam de uma hora para outra, e ela podia estar de olho no seu cliente.

- Ele já me explicou. É o Bastão Violeta.

E, virando-se para o oriental, sugeriu que saíssem, porque decidira aceitar o convite.

Mas o homem parecia entusiasmado com o interesse que seu brinquedo despertava.

- Por volta de 1900, quando as primeiras pilhas começaram a circular no mercado, a medicina tradicional começou a fazer experiências com eletricidade, para ver se curava doenças mentais ou histeria. Também foi usada para combater espinhas e estimular a vitalidade da pele. Está vendo estas duas extremidades? Elas eram colocadas aqui -apontou para suas têmporas - e a bateria provocava a mesma descarga estática que sofremos quando o ar está muito seco.

Aquilo era uma coisa que jamais acontecia no Brasil, mas na Suíça er a muito comum, Maria descobrira quando certo dia, ao abrir a porta de um táxi escutara um estalido e levara um choque. Achou que tinha sido um problema do carro, reclamou, disse que não ia pagar a corrida, e o chofer quase a agrediu, chamando-a de ignorante. Ele tinha razão; não era o carro, era o ar muito seco. Depois de vários choques, passou a ter medo de tocar em qualquer coisa de metal, até que descobriu em um supermercado uma pulseira que descarregava a eletricidade acumulada no corpo.

Virou-se para o oriental:

- Mas é extremamente desagradável!

Nyah estava cada vez mais impaciente com os comentários de Maria. Para evitar futuros conflitos com sua única possível amiga, mantinha o braço em torno do ombro do homem, de modo a não deixar nenhuma dúvida sob re a quem ele pertencia.

- Depende de onde você colocar - o oriental riu alto.

Em seguida, girou a pequena manivela, e os dois bastões pareceram ficar da cor violeta. Em um movimento rápido, ele encostou-os nas duas mulheres; houve o estalido, mas o choque parecia mais uma espécie de coceira que dor.

Milan aproximou-se.

- Por favor, não use isso aqui.

O homem tornou a colocar os bastões na caixa. A filipina aproveitou a oportunidade e sugeriu que fossem logo para o hotel. O oriental pareceu um pouco decepcionado, a recémchegada estava muito mais interessada no Bastão Violeta do que a mulher que agora o convidava para sair. Vestiu seu casaco, guardou a caixa dentro de uma pasta de couro, comentando:


Date: 2015-12-17; view: 735


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