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Agradecimentos especiais a Klaus. 11 page

 

Tentara com uma ou outra prostituta que também servia aos "clientes especiais", mas nenhuma lhe dera maior atenção, porque Maria era esperta, aprendia rápido, havia se transformado na grande ameaça do Copacabana. Ralf Hart, de todos os homens que conhecia, era talvez o único que poderia entender, pois Milan o considerava um "cliente especial". Mas ele a enxergava com os olhos iluminados de amor, e isso tornava as coisas mais difíceis, melhor não dizer nada.

 

 

- O que você sabe de sofrimento, humilhação, e muito prazer?

Mais uma vez ela não tinha conseguido se controlar.

Ralf parou de comer a pizza.

- Sei tudo. E não me interessa.

A resposta viera rápida, e Maria ficou chocada. Então, todo mundo sabia tudo, menos ela? Que mundo era aquele, meu Deus?

- Conheci meus demônios e minhas trevas - continuou Ralf. - Fui até o fundo, experimentei tudo, não apenas nesta área, mas em muitas outras. Entretanto, na última vez em que nos encontramos, fui aos meus limites através do desejo, e não da dor. Mergulhei no fundo da minha alma, e sei que ainda quero coisas boas, muitas coisas boas desta vida.

Teve vontade de dizer: "Uma delas é você, por favor, não siga este caminho." Mas não teve coragem; em vez disso, chamou um táxi e pediu que os levasse até a beira do lago

- onde, uma eternidade antes, tinham andado juntos no dia em que se conheceram. Maria estranhou o pedido, ficou quieta - o instinto lhe dizia que tinha muito a perder, embora sua mente ainda estivesse embriagada com o que acontecera na véspera.

Só acordou de sua passividade quando chegaram ao jardim à beira do lago; embora ainda fosse verão, já começava a fazer muito frio durante a noite.

- O que fazemos aqui? - perguntou, quando saltaram. -Está ventando, vou pegar um resfriado.

- Estive pensando muito em seu comentário na estação de trem. Sofrimento e prazer.

Tire os sapatos.

Ela lembrou-se de que certa vez um dos seus fregueses pedira a mesma coisa, e ficara excitado apenas por olhar seus pés. Será que a aventura não a deixava em paz?

- Vou pegar um resfriado - insistiu.

- Faça o que estou dizendo - insistiu ele. - Não vai pegar nenhum resfriado, se não demorarmos muito. Acredite em mim, como eu acredito em você.

Sem nenhuma razão aparente, Maria entendeu que ele estava querendo ajudá-la; talvez porque já tivesse bebido de uma água muito amarga, e achava que ela corria o mesmo risco. Não queria ser ajudada; estava contente com seu novo mundo, onde descobria que o sofrimento não era mais um problema. Entretanto, pensou no Brasil, na impossibilidade de encontrar um parceiro para compartilhar este universo diferente, e como o Brasil era mais importante que tudo em sua vida, ela tirou os sapatos. O chão estava cheio de pequenas pedras, que logo rasgaram suas meias, mas isso não tinha importância, compraria outras.



- Tire o casaco.

Ela podia ter dito que "não" mas, desde a noite anterior, acostumara-se à alegria de poder dizer "sim" a tudo que estava no seu caminho. Tirou o casaco, o corpo ainda quente não reagiu logo, mas aos poucos o frio começou a incomodá- la.

- Vamos andar. E vamos conversar.

- Aqui é impossível: o chão está cheio de pedras.

- Justamente por isso; quero que você sinta estas pedras, quero que lhe provoquem dor, que a machuquem, porque você deve ter experimentado, assim como eu experimentei, o sofrimento aliado ao prazer, e preciso arrancar isso de sua alma.

Maria sentiu vontade de dizer: "Não precisa, eu gosto." Mas começou a caminhar sem pressa, as solas dos pés começaram a arder, devido ao frio e às pontas das pedras.

- Uma das minhas exposições me levou ao Japão, justamente quando eu estava totalmente envolvido naquilo que você chamou de "sofrimento, humilhação, e muito prazer". Naquela época, eu achava que não havia um caminho de volta, que iria cada vez mais fundo, e nada mais restava na minha vida, exceto a vontade de punir e ser punido.

"Afinal, somos seres humanos, nascemos cheios de culpa, ficamos com medo quando a felicidade se transforma em algo possível, e morremos querendo castigar os outros porque sempre nos sentimos impotentes, injustiçados, infelizes. Pagar seus pecados, e poder castigar os pecadores - ah, isso não é uma delícia? Sim, é ótimo."

Maria andava, a dor e o frio tornavam difícil prestar atenção nas palavras dele, mas ela se esforçava.

- Hoje notei as marcas em seus pulsos.

As algemas. Tinha colocado várias pulseiras para disfarçar; entretanto, os olhos acostumados sempre sabem o que estão buscando.

- Enfim, se tudo aquilo que você experimentou recentemente a está conduzindo a dar este passo, não sou eu que vou impedi-Ia; mas nada disso tem relação com a verdadeira vida.

- Passo?

- Dor e prazer. Sadismo e masoquismo. Chame como quiser, mas se estiver convencida de que este é o seu caminho, sofrerei, lembrarei do desejo, dos encontros, do passeio pelo Caminho de Santiago, de sua luz. Terei guardado em um lugar especial uma caneta, e cada vez que acender aquela lareira me lembrarei de você. Entretanto, não a procurarei mais.

-

- Maria sentiu medo, achou que era hora de recuar, falar a verdade, deixar de fingir que sabia mais que ele.

-

- - O que experimentei recentemente, melhor dizendo, ontem, jamais tinha experimentado. E me assusta que, no limite da degradação, eu pudesse encontrar a mim mesma.

-

- Estava ficando difícil continuar conversando - seus dentes batiam de frio, e seus pés doíam muito.

-

- - Na minha exposição, em uma região chamada Kumano, apareceu um lenhador -

continuou Ralf, como se não tivesse escutado o que ela dizia. - Não gostou dos meus quadros, mas foi capaz de decifrar, através da pintura, o que eu estava vivendo e sentindo.

No dia seguinte, me procurou no hotel, e perguntou se eu estava contente; se estivesse, devia continuar fazendo 0 que gostava. Se não estivesse, deveria acompanhá- lo e passar uns dias com ele.

"Me fez andar nas pedras, como estou fazendo com você agora. Me fez sentir frio. Me obrigou a entender a beleza da dor, só que era uma dor aplicada pela natureza, não pelo homem. Chamava isso de Shugen-do, uma prática milenar.

"Disse- me que era um homem que não tinha medo da dor, e isso era bom, porque para dominar a alma, você tem que aprender também a dominar o corpo. Disse-me também que estava usando a dor de maneira errada, e isso era muito ruim.

"Aquele lenhador, ignorante, achava que me conhecia melhor do que eu, e isso me irritava, ao mesmo tempo que me deixava orgulhoso de saber que os meus quadros eram capazes de expressar exatamente o que eu estava sentindo."

Maria sentiu que uma pedra mais pontiaguda lhe cortara o pé, mas o frio era mais forte, seu corpo estava ficando dormente, e não conseguia acompanhar direito as palavras de Ralf Hart. Por que os homens, neste mundo santo de Deus, só tinham interesse em mostrar- lhe a dor? A dor sagrada, a dor com prazer, a dor com explicações ou sem explicações, mas era sempre dor, dor...

 

O pé machucado tocou em outra pedra, ela reprimiu o grite e continuou andando. No começo tinha procurado manter sus integridade, seu autodomínio, aquilo que ele chamava de "luz" Mas agora estava andando devagar, enquanto seu estômago seu pensamento davam voltas: pensou em vomitar. Pensou em parar, nada daquilo fazia sentido, e não parou.

 

Não parou em respeito a si mesma; podia agüentar aquela caminhada descalça pelo tempo que fosse necessário, porque ela não ia durar toda a sua vida. E de repente outro pensamento cruzou o espaço: e se não pudesse comparecer ao Copacabana no dia seguinte, por caus a de um sério problema nos pés, ou por uma febre causada pela gripe que, tinha certeza, iria instalar-se em seu corpo pouco

agasalhado? Pensou nos fregueses que a esperavam, em Milan, que confiava tanto nela, no dinheiro que deixaria de ganhar, na fazenda, nos pais orgulhosos. Mas o sofrimento logo afastou qualquer tipo de reflexão, e ela colocava um pé diante do outro, louca para que Ralf Hart reconhecesse seu esforço, e lhe dissesse que bastava, podia calçar os sapatos.

Entretanto ele parecia indiferente, longe, como se aquela fosse a única maneira de livrá- la de algo que não conhecia direito, que a seduzia, mas que terminaria por deixar marcas mais fundas que as das algemas. Embora sabendo que ele tentava ajudá- la, e por mais que se esforçasse para ir adiante e mostrar a luz de sua força de vontade, a dor não permitia que ela tivesse pensamentos profanos ou nobres - era apenas dor, que ocupava todo o espaço, a assustava, e a obrigava a pensar que tinha um limite, e que não iria conseguir.

Mas deu um passo.

E outro.

A dor agora parecia invadir a alma e enfraquecê- la espiritualmente, porque uma coisa é fazer um pouco de teatro em um hotel cinco estrelas, nua, com vodca, caviar, e um chicote entre as pernas; outra coisa é estar no frio, descalça, com pedras lhe cortando os pés. Estava desorientada, não conseguia trocar uma só palavra com Ralf Hart, tudo que existia em seu universo eram as pedras pequenas e cortantes que marcavam a trilha por entre as árvores.

Então, quando pensava que ia desistir, um estranho sentimento a invadiu: tinha atingido o seu limite, e além dele estava um espaço vazio, onde parecia flutuar acima de si mesma, e ignorar o que estava sentindo. Seria esta a sensação que os penitentes experimentavam? Na outra extremidade da dor, descobria uma porta para um nível diferente de consciência, e já não havia espaço para mais nada, apenas para a natureza implacável - e para ela mesma, invencível.

Tudo a sua volta transformou-se em um sonho: o jardim mal iluminado, o lago escuro, o homem em silêncio, um casal ou outro que passeava, sem perceber que ela estava descalça, andando com dificuldade. Não sabia se era o frio ou o sofrimento, mas de repente deixou de sentir seu corpo, entrou em um estado em que não existe qualquer desejo ou medo, apenas uma misteriosa - como poderia chamar isso? -, uma misteriosa "paz". O

limite da dor não era o seu limite; podia ir além dele.

Pensou em todos os seres humanos que sofriam sem pedir, e ali estava ela, provocando seu próprio sofrimento - mas aquilo não importava mais, havia cruzado as fronteiras do corpo, e agora lhe restava apenas a alma, a "luz", uma espécie de vazio - que alguém, algum dia, chamou de Paraíso. Existem certos sofrimentos que só podem ser esquecidos quando podemos flutuar acima de nossas dores.

A próxima coisa de que se lembrou foi de Ralf pegando-a no colo, tirando a jaqueta e a colocando em seu ombro. Devia ter desmaiado de frio, mas pouco importava; estava contente, não tinha medo - havia vencido. Não se humilhara diante daquele homem.

 

Os minuto s se transformaram em horas, ela devia ter dormido em seus braços, porque quando acordou, embora ainda fosse noite, estava em um quarto com um aparelho de TV

em um dos cantos, e mais nada. Branco, vazio.

Ralf apareceu com um chocolate quente.

- Tudo bem - disse ele. - Você chegou aonde devia chegar.

- Não quero chocolate, quero vinho. E quero descer para nosso lugar, a lareira, os livros espalhados por todo canto.

Tinha dito "nosso lugar". Não era o que havia planejado.

Olhou os seus pés; afora um pequeno corte, havia apenas marcas vermelhas, que deviam desaparecer em algumas horas. Com certa dificuldade, desceu as escadas sem prestar muita atenção a nada; foi para o seu canto, no tapete ao lado da lareira - descobrira que sempre que estava ali ela se sentia bem, como se fosse o seu "sítio", seu lugar naquela casa.

- O tal lenhador me disse que, quando se faz um tipo de exercício físico, quando se exige tudo de seu corpo, a mente ganha uma força espiritual estranha, que tem a ver com a

"luz" que vi em você. O que sentiu?

- Que a dor é amiga da mulher.

- Esse é o perigo.

- Que a dor tem um limite.

- Essa é a salvação. Não se esqueça disso.

A mente de Maria ainda estava confusa; experimentava a tal

"paz", quando fora além do seu limite. Ele lhe mostrara outro tipo de sofrimento, e também esse lhe dera um estranho prazer.

Ralf pegou uma grande pasta, e abriu-a na sua frente. Eram desenhos.

- A história da prostituição. Foi o que você me pediu, quando nos encontramos.

Sim, havia pedido, mas era apenas uma maneira de passar o tempo, de tentar ser interessante. Isso não tinha a menor importância agora.

- Durante todos estes dias, estive navegando em um mar desconhecido. Não achei que houvesse uma história, pensava apenas que era a profissão mais antiga do mundo, como dizem as pessoas. Mas existe uma história; melhor dizendo, duas histórias.

- E estes desenhos?

Ralf Hart pareceu um pouco decepcionado porque ela não o compreendia, mas logo controlou-se e seguiu adiante.

- São as coisas que coloquei no papel enquanto lia, pesquisava, aprendia.

- Falaremos disso outro dia; hoje não quero mudar de assunto, preciso entender a dor.

- Você a sentiu ontem, e descobriu que ela a conduzia ao prazer. Você a sentiu hoje, e encontrou a paz. Por isso eu lhe digo: não se acostume, porque é muito fácil poder viver com ela, é uma droga poderosa. Está no nosso cotidiano, no sofrimento escondido, na renúncia ao amor, quando o culpamos pela derrota de nossos sonhos. A dor assusta quando mostra sua verdadeira face, mas é sedutora quando está vestida de sacrifício, renúncia. Ou covardia. O ser humano, por mais que a rejeite, sempre encontra um meio de estar com ela, namorá- la, fazer com que seja parte da sua vida.

- Não acredito. Ninguém deseja sofrer.

- Se você conseguir entender que pode viver sem sofrimento, já é um grande passo, mas não creia que outras pessoas irão compreendê- la. Sim, ninguém deseja sofrer, e mesmo assim quase todos procuram a dor, o sacrifício, e sentem-se justificados, puros, merecedores do respeito dos filhos, dos maridos, dos vizinhos, de Deus. Não pensemos nisso agora, saiba apenas que o que move o mundo não é a busca do prazer, mas da renúncia a tudo que é importante.

"O soldado vai para a guerra matar o inimigo? Não: vai morrer por seu país. A mulher gosta de mostrar ao marido 0 quanto está contente? Não: quer que ele veja o quanto se dedica, o quanto sofre para vê-lo feliz. O marido vai para o trabalho achando que encontrará sua realização pessoal? Não: está dando seu suor e suas lágrimas pelo bem da família. E por aí vai: filhos que renunciam aos sonhos para alegrar os pais, pais que renunciam à vida para alegrar os filhos, dor e sofrimento justificando aquilo que devia trazer apenas alegria: amor."

- Pare.

Ralf parou. Era o momento certo para mudar de assunto, e come çou a mostrar um desenho após o outro. No início, tudo parecia confuso, havia contornos de pessoas - mas também rabiscos, cores, traços nervosos ou geométricos. Aos poucos, porém, ela começou a entender o que ele dizia, porque cada palavra sua era acompanhada de um gesto de mão, e cada frase a colocava no mundo de que até então se negara a fazer parte dizendo para si mesma que tudo não passava de um período em sua vida, uma maneira de ganhar dinheiro e nada mais.

- Sim, descobri que não há apenas uma, mas duas histórias sobre a prostituição. A primeira você conhece muito bem porque é também a sua: uma moça bonita, por diversas razões que ela escolheu, ou que escolheram por ela, descobre que a única maneira de sobreviver é vender o seu corpo. Algumas terminam dominando nações, como Messalina fez com Roma, outras se transformam em mitos, como Madame Du Barry, outras ainda namoram a aventura e a desgraça ao mesmo tempo, como a espiã Mata Hari. Mas a maioria jamais irá encontrar um momento de glória ou um grande desafio: serão para sempre meninas do interior que vêm em busca de fama, marido, aventura, e acabam descobrindo uma outra realidade, mergulham nela por algum tempo, se acostumam, acham que estão sempre no controle, e não conseguem fazer mais nada.

"Os artistas continuam fazendo suas esculturas, pinturas, e escrevendo seus livros há mais de três mil anos. Da mesma maneira, as prostitutas continuam seu trabalho através do tempo como se nada tivesse mudado muito. Quer saber detalhes?"

Maria fez que sim com a cabeça. Precisava ganhar tempo, entender a dor, começava a ter a sensação de que algo muito ruim havia saído de seu corpo enquanto caminhava no parque.

- Aparecem prostitutas nos textos clássicos, nos hieróglifos egípcios, na escrita suméria, no Antigo e no Novo Testamento. Mas a profissão só começa a se organizar no século VI a.C., quando o legislador Sólon, na Grécia, institui bordéis controlados pelo Estado, e inicia a cobrança de impostos pelo "comércio da carne". Os homens de negócios atenienses se alegram porque o que antes era proibido agora passa a ser legal. As prostitutas, por seu lado, começam a ser classificadas segundo os impostos que pagam.

"A mais barata é chamada de pornai, escrava que pertence aos donos do estabelecimento. Em seguida, vem a peripatética, que consegue seus fregueses na rua.

Finalmente, no nível mais alto de preço e de qualidade, está a hetaira, à companhia feminina', que acompanha os homens de negócios em suas viagens, freqüenta os restaurantes chiques, é dona de seu próprio dinheiro, dá conselhos, interfere na vida política da cidade. Como você vê, o que aconteceu ontem, acontece também hoje.

 

 

"Na Idade Média, por causa das doenças sexualmente transmissíveis..."

Silêncio, medo de gripe, calor da lareira - agora necessária para aquecer seu corpo e sua alma. Maria não quer mais ouvir aquela história - dava- lhe a sensação de que o mundo havia parado, que tudo se repetia, e o homem jamais seria capaz de dar ao sexo o respeito merecido.

- Você não parece interessada.

Ela fez um esforço. Afinal de contas, era o homem a quem decidira entregar seu coração, embora já não estivesse tão segura.

- Não estou interessada naquilo que conheço; isso me entristece. Você me disse que havia outra história.

- A outra história é exatamente o oposto: a prostituição sagrada.

De repente, ela saíra do seu estado sonolento e o escutava com atenção. Prostituição sagrada? Ganhar dinheiro com sexo, e ainda assim aproximar-se de Deus?

- O historiador grego Heródoto escreve a respeito de Babilônia: "Existe ali um costume muito estranho: toda mulher que nasceu na Suméria é obrigada, pelo menos uma vez na vida, a ir até o templo da deusa Ishtar e entregar seu corpo a um desconhecido, como símbolo de hospitalidade, e por um preço simbólico."

Depois iria perguntar quem era esta deusa; talvez também ela a ajudasse a recuperar algo que havia perdido, e não sabia o que era.

- A influência da deusa Ishtar espalhou-se por todo o Oriente Médio, atingiu a Sardenha, Sicília, e os portos do mar Mediterrâneo. Mais tarde, durante o Império Romano, outra deusa, Vesti, exige a virgindade total, ou a entrega total. Para manter o fogo sagrado, mulheres do seu templo se encarregavam de iniciar os jovens e os reis no caminho da sexualidade: cantavam hinos eróticos, entravam em transe, e entregavam seu êxtase ao universo, numa espécie de comunhão com a divindade.

Ralf Hart mostrou uma fotocópia de algumas letras antigas, com a tradução em alemão no pé da página. Declamou-a devagar, traduzindo cada verso: Quando estou sentada à porta de uma taverna, eu, Ishtar, a deusa, sou prostituta, mãe, esposa, divindade. Sou o que chamam de Vida Embora vocês chamem de Morte. Sou o que chamam de Lei Embora vocês chamem de Marginal. Eu sou o que vocês buscam E aquilo que conseguiram. Eu sou aquilo que vocês espalharam E agora recolhem meus pedaços.

Maria soluçou um pouco, e Ralf Hart riu; sua energia vital estava voltando, a "luz"

começava de novo a brilhar. Era melhor continuar com a história, mostrar os desenhos, fazê-la sentir-se amada.

- Ninguém sabe por que a prostituição sagrada desapareceu, depois de haver durado pelo menos dois milênios. Talvez por causa das doenças, ou de uma sociedade que mudou suas regras quando as religiões também mudaram. Enfim, isso não existe mais, e não voltará a existir. Hoje em dia, os homens controlam o mundo, e o termo serve apenas para criar um estigma, e chamar de prostituta qualquer mulher que ande fora da linha. - Você pode ir ao Copacabana amanhã?

Ralf não entendeu a pergunta, mas concordou imediatamente.

 

Do diário de Maria, na noite em que caminhou descalça pelo jardim Inglês em Genève:

Não me interessa se algum dia já foi sagrado ou não, mas EU ODEIO O QUE FAÇO.

Está destruindo minha alma, me fazendo perder o contato comigo mesma, me ensinando que a dor é uma recompensa, o dinheiro compra tudo, justifica tudo.

Ninguém é feliz à minha volta; os clientes sabem que precisam pagar por aquilo que deveriam ter de graça, e isso é deprimente. As mulheres sabem que precisam vender aquilo que gostariam de entregar apenas por prazer e carinho, e asso é destruidor. Lutei muito antes de escrever isso, aceitar que estava infeliz, descontente - precisava e ainda preciso resistir mais algumas semanas.

Entretanto, não dá mais para ficar quieta, fingir que está tudo normal, que é um período, uma época da minha vida. Quero esquecê- la, preciso amar - só isso, preciso amar.

A vida é curta - ou longa demais - para que eu possa me dar ao luxo de vivê-la tão mal.

Não é a casa dele. Não é a sua casa. Não é nem Brasil, nem Suíça, mas um hotel - que pode estar em qualquer lugar do mundo, sempre com os mesmos móveis, e aquele ambiente que pretende ser familiar, o que o faz ainda mais distante.

Não é o hotel com a bela vista para o lago, a lembrança da dor, do sofrimento, do êxtase; suas janelas dão para o Caminho de Santiago, uma rota de peregrinação mas não de penitência, um lugar onde as pessoas se encontram nos cafés à beira da estrada, descobrem a "luz", conversam, ficam amigas, se apaixonam. Está chovendo, e a essa hora da noite ninguém anda por ali, mas andaram durante muitos anos, décadas, séculos - talvez o caminho precise respirar, descansar um pouco dos muitos passos que todos os dias se arrastam por ele.

Apagar a luz. Fechar as cortinas.

Pedir que tire a roupa, tirar também a sua. A escuridão física nunca é total, e quando os olhos já estão acostumados, poder ver, no contorno de uma pequena luz que entra não se sabe de onde, a silhueta do homem. Da outra vez que se encontraram, apenas ela havia deixado parte do seu corpo nu.

Tirar dois lenços, cuidadosamente dobrados, lavados, e enxaguados várias vezes, de modo a não deixar nenhum traço de perfume ou de sabão. Aproximar-se dele e pedir que vende seus olhos. Ele hesita por um momento, e comenta sobre alguns dos infernos por que já passou. Ela diz que não se trata disso, que precisa apenas da escuridão total, que agora é sua vez de ensinar-lhe algo, como ontem ele lhe havia ensinado sobre a dor. Ele se entrega, coloca a venda. Ela faz o mesmo; agora já não há fresta de luz, estão no verdadeiro escuro, um precisa da mão do outro para chegar até a cama.

Não, não devemos nos deitar. Vamos nos sentar como sempre fizemos, frente a frente, só que um pouco mais perto, de modo que meus joelhos toquem os seus joelhos.

Sempre quis fazer isso. Mas nunca tinha o que precisava: tempo. Nem com o seu primeiro namorado, nem com o homem que a penetrou pela primeira vez. Nem com o árabe que pagou mil francos, talvez esperando mais do que ela foi capaz de dar embora mil francos não bastassem para ela comprar o que desejava. Nem com os muitos homens que passaram pelo seu corpo, entraram e saíram de suas pernas, às vezes pensando apenas em si mesmos, às vezes pensando também nela, às vezes com sonhos românticos, às vezes apenas com o instinto de repetir algo porque lhes disseram que é assim que um homem age, e se não agir assim, não é homem.

Lembra-se do seu diário. Está farta, quer que as semanas que faltam passem rapidamente, e por isso entrega-se a este homem, porque ali está a luz de seu próprio amor escondido. O pecado original não foi a maçã que Eva comeu, foi achar que Adão precisava compartilhar exatamente o que ela havia experimentado. Eva tinha medo de seguir o seu caminho sem a ajuda de alguém, então quis dividir o que sentia.

Certas coisas não se dividem. Não devemos ter medo dos oceanos em que mergulhamos por nossa livre vontade; o medo atrapalha o jogo de todo mundo. O homem está passando por infernos para entender isso. Amemos uns aos outros, mas não tentemos possuir uns aos outros.

Eu amo este homem que está diante de mim, porque eu não o possuo, e ele não me possui. Somos livres em nossa entrega, preciso repetir isso dezenas, centenas, milhões de vezes, até que termine por acreditar em minhas próprias palavras.

Pensa um pouco nas outras prostitutas que trabalham com ela. Pensa na sua mãe, nas suas amigas. Todas acreditam que o homem deseja apenas onze minutos por dia, e pagam um dinheirão por isso. Não, não é assim; o homem também é uma mulher; quer encontrar alguém, descobrir um sentido para sua vida.

Será que sua mãe se comporta como ela, e finge ter orgasmo com seu pai? Ou será que, no interior do Brasil, ainda é proibido mostrar que uma mulher tem prazer no sexo?

Sabe tão pouco da vida, do amor, e agora - com os olhos vendados e todo 0 tempo do mundo - vai descobrindo a origem de tudo, e tudo começa onde e como ela gostaria de ter começado.


Date: 2015-12-17; view: 674


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