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Agradecimentos especiais a Klaus. 10 page

Entretanto, se o seu coração começasse a reclamar da ausência, ou das coisas erradas que dissera quando estavam juntos, ela dizia para si mesma: "Ah, você quer pensar nisso?

Então tudo bem; co ntinue fazendo o que deseja, enquanto eu me dedico a coisas mais importantes."

Continuava a ler, ou, se estivesse na rua, começava a prestar atenção a tudo que estava a sua volta: cores, pessoas, sons, principalmente sons -dos seus passos, das páginas que se viravam, dos carros, dos fragmentos de conversas, e o pensamento incômodo terminava por desaparecer. Se voltasse cinco minutos depois, ela repetia o processo, até que estas lembranças, ao serem aceitas mas gentilmente rejeitadas, se afastassem por um tempo considerável.

Um destes "pensamentos negativos" era a possibilidade de não tornar a vê-lo. Com um pouco de prática e muita paciência, ela conseguiu transformá- lo em um "pensamento positivo": quando partisse, Genève seria um rosto de homem com cabelos muito grandes e fora de moda, sorriso infantil, voz grave. Se alguém lhe perguntasse, muitos anos depois, como era o lugar que conhecera em sua juventude, ela poderia responder: "Bonito, capaz de amar e ser amado."

 

Do diário de Maria, em um dia de pouco movimento no Copacabana: De tanto conviver com as pessoas que vêm aqui; chego à conclusão de que o sexo tem sido utilizado como qualquer outra droga: para fugir à realidade, para esquecer dos problemas, para relaxar. E, como todas as drogas, é uma prática nociva e destruidora.

Se uma pessoa quer se drogar, seja com sexo ou com qualquer coisa, isso é problema dela; as conseqüências de seus atos serão melhores ou piores de acordo com aquilo que ela escolheu para si mesma. Mas se falamos em avançar na vida, temos que entender que o que é "bonzinho" é bem diferente do que é "melhor".

Ao contrário do que os meus clientes pensam, o sexo não pode ser praticado a qualquer hora. Há um

relógio escondido em cada um de nós, e para fazer amor os ponteiros de ambas as pessoas têm que estar marcando a mesma hora ao mesmo tempo. Isso não acontece todos os dias. Quem ama não depende do ato sexual para sentir-se bem. Duas pessoas que estão juntas, e se querem bem, precisam acertar seus ponteiros, com paciência e perseverança, com jogos e representações "teatrais", até entender que fazer amor é muito mais que um encontro; é um "abraço" das partes genitais.

Tudo tem importância. Uma pessoa que vive intensamente sua vida goza o tempo todo e não sente a falta de sexo. Quando ela faz sexo, é por abundância, porque o copo de vinho está tão cheio que transborda naturalmente, porque é absolutamente inevitável, porque ela aceita o apelo da vida, porque neste momento, apenas neste momento, ela consegue perder o controle.



PS. - Acabo de reler o que escrevi: meu Deus do céu, estou ficando intelectual demais!!!

Pouco depois de ter escrito isso, e quando se preparava para viver mais uma noite de Mãe Compreensiva ou Menina Ingênua, a porta do Copacabana abriu-se e entrou Terence, o executivo da gravadora de discos, um dos clientes especiais.

Milan pareceu satisfeito por trás do bar: a menina não o havia decepcionado. Maria lembrou na mesma hora das palavras que diziam tantas coisas, e ao mesmo tempo não diziam nada: "Dor, sofrimento, e muito praze r."

- Vim de Londres especialmente para vê -Ia. Pensei muito em você.

Ela sorriu, tentando fazer com que seu sorriso não fosse um encorajamento. Mais uma vez ele não seguiu o ritual, não a convidou para nada - apenas sentou-se.

- Quando se faz uma pessoa descobrir qualquer coisa, o professor também termina descobrindo algo novo.

- Sei do que está falando - respondeu Maria, lembrando-se de Ralf Hart, e irritando-se com sua própria lembrança. Estava diante de outro cliente, precisava respeitá- lo e fazer o possível para deixá-lo contente.

- Quer ir adiante?

Mil francos. Um universo escondido. Um patrão que a olhava. A certeza de que poderia parar quando quisesse. A data marcada para a volta ao Brasil. Um outro homem, que não aparecia nunca.

 

- Você está com pressa? - perguntou Maria.

Ele disse que não. O que ela queria?

- Quero o meu drink, a minha dança, o respeito pela minha profissão.

Ele hesitou por alguns minutos, mas era parte do teatro, de dominar e ser dominado.

Pagou o drink, dançou, pediu um táxi, entregou- lhe o dinheiro enquanto cruzavam a cidade, e foram para o mesmo hotel. Entraram, ele cumprimentou o porteiro italiano da mesma maneira que fizera na noite em que se conheceram, subiram para o mesmo quarto com vista para o rio.

Terence riscou um fósforo, e só então Maria se deu conta de que havia dezenas de velas espalhadas. Ele começou a acendê- las.

- O que você quer saber? Por que sou assim? Se não me engano, você adorou a noite que passamos juntos. Quer saber por que você também é assim?

- Estou pensando que no Brasil temos a superstição de acender mais de três coisas com o mesmo fósforo. E você não está respeitando isso.

Ele ignorou o comentário.

- Você é como eu. Não está aqui pelos mil francos, mas pelo sentimento de culpa, de dependência, pelos seus complexos e sua insegurança. E isso não é bom nem ruim, é a natureza humana.

Pegou o controle remoto da TV e mudou várias vezes de canal, até parar em um noticiário, em que refugiados procuravam escapar de uma guerra.

- Está vendo isso? Já viu os programas em que as pessoas vão discutir seus problemas pessoais diante de todo mundo? Já foi até a banca de jornal e viu as manchetes? O mundo se alegra no sofrimento e na dor. Sadismo ao olhar, masoquismo ao concluir que não precisamos saber tudo isso para sermos felizes, e mesmo assim assistimos à tragédia alheia e, às vezes, sofremos com ela.

Ele serviu outros dois copos de champanha, desligou a TV e continuou a acender as velas, sem respeitar a superstição que Maria mencionara.

- Repito: é a condição humana. Desde que fomos expulsos do paraíso, ou estamos sofrendo, ou estamos fazendo alguém sofrer, ou estamos olhando o sofrimento dos outros.

É incontrolável.

Começaram a escutar o estrondo dos trovões lá fora, uma gigantesca tempestade estava se aproximando.

- Mas eu não consigo - disse Maria. - Me parece ridículo achar que você é o meu mestre e sou sua escrava. Não precisamos de nenhum "teatro" para nos encontrarmos com o sofrimento; a vida já nos oferece muitas oportunidades.

Terence tinha acabado de acender todas as velas. Pegou uma delas, colocou-a no centro da mesa, tornou a servir champanha e caviar. Maria bebia rápido, pensando nos mil francos que estavam em sua carteira, no desconhecido que a fascinava e amedrontava, na maneira de controlar seu pavor. Sabia que, com aquele homem, uma noite jamais seria como a outra, não podia ameaçá- lo.

- Sente-se.

A voz alternava entre doce e autoritária. Maria obedeceu, e uma onda de calor percorreu seu corpo; aquela ordem era familiar, ela sentia-se mais segura.

"Teatro. Preciso entrar na peça de teatro."

Era bom receber ordens. Não precisava pensar, apenas obedecer. Suplicou por mais champanha, ele lhe trouxe vodca; subia mais rápido, libertava com mais facilidade, combinava mais com o caviar.

Abriu a garrafa, Maria praticamente bebeu sozinha, enquanto escutava os trovões.

Tudo colaborava para o momento perfeito, como se a energia dos céus e da terra mostrasse também seu lado violento.

Em um dado momento, Terence pegou uma pequena maleta no armário e colocou-a sobre a cama.

- Não se mexa.

Maria ficou imóvel. Ele abriu a maleta e tirou dois pares de algemas de metal cromado.

-Sente-se de pernas abertas.

Ela obedeceu. Impotente por vontade própria, submissa porque assim desejava.

Percebeu que ele olhava entre suas pernas, podia ver a calcinha preta, as meias longas, as coxas, podia imaginar os cabelos, o sexo.

- Fique de pé!

Ela saltou da cadeira. Seu corpo custou a equilibrar-se, e viu que estava mais embriagada do que imaginara.

- Não me olhe. Abaixe a cabeça, respeite seu dono!

Antes que pudesse abaixar a cabeça, um chicote fino foi retirado da mala e estalou no ar - como se tivesse vida própria.

- Beba. Mantenha a cabeça baixa, mas beba.

Entornou mais um, dois, três copos de vodca. Agora não era apenas um teatro, mas a realidade da vida: não tinha controle. Sentia-se um objeto, um simples instrumento, e por incrível que pareça, aquela submissão lhe dava a sensação de completa liberdade. Não era mais a mestra, a que ensina, a que consola, a que escuta as confissões, a que excita; era apenas a menina do interior do Brasil, diante do poder gigantesco do homem.

-- Tire a roupa.

A ordem veio seca, sem desejo - e, no entanto, nada mais erótico. Mantendo a cabeça baixa em sinal de reverência, Maria desabotoou o vestido e deixou que escorregasse até o chão.

- Você não está se comportando bem, sabia?

De novo o chicote estalou no ar.

- Precisa ser castigada. Uma menina da sua idade, como ousa me contrariar? Você devia estar de joelhos diante de mim!

Maria fez menção de ajoelhar-se, mas o chicote a interrompeu; pela primeira vez tocava a sua carne - nas nádegas. Ardia, mas parecia não deixar marcas.

- Eu não disse para ajoelhar-se. Disse?

- Não.

Outra vez o chicote tocou suas nádegas.

- Diga: "Não, meu senhor."

E mais uma chibatada. Mais ardor. Por uma fração de segundo ela pensou que podia parar com aquilo tudo imediatamente; ou podia escolher ir até o fim, não pelo dinheiro, mas pelo que ele dissera na primeira vez - um ser humano só se conhece quando vai até seus limites.

E aquilo era novo; era a aventura, podia decidir mais tarde se gostaria de continuar, mas naquele instante ela deixou de ser a moça que tinha três objetivos na vida, que estava ganhando dinheiro com seu corpo, que conhecera um homem com uma lareira e histórias interessantes para contar. Ali ela não era ninguém - e por não ser ninguém, era tudo que sonhava.

- Tire toda a roupa. E ande de um lado para o outro, para que eu possa vê-Ia.

Mais uma vez obedeceu, mantendo a cabeça baixa, sem dizer uma só palavra. O

homem que a olhava estava vestido, impassível, não era a mesma pessoa com quem tinha vindo conversando desde a boate - era um Ulisses que vinha de Londres, um Teseu que chegava do céu, um seqüestrador que invadia a cidade mais segura do mundo, e o coração mais fechado da terra. Tirou a calcinha, o sutiã, sentiu-se indefesa e protegida ao mesmo tempo. O chicote de novo estalou no ar, desta vez sem tocar seu corpo.

- Mantenha a cabeça baixa! Você está aqui para ser humilhada, para ser submetida a tudo que eu desejar, entende?

 

 

- Sim, senhor.

Ele agarrou seus braços e colocou o primeiro par de algemas em seus pulsos.

- E vai apanhar muito. Até aprender a comportar-se.

Com a mão aberta, deu-lhe um tapa nas nádegas. Maria gritou, desta vez tinha doído.

- Ah, e está reclamando, não é? Pois vai ver o que é bom.

Antes que ela pudesse reagir, uma mordaça de couro estava prendendo sua boca. Não a impedia de falar, podia dizer "amarelo" ou "vermelho", mas sentia que era seu destino deixar que aquele homem pudesse fazer dela o que quisesse, e não tinha como escapar dali.

Estava nua, amordaçada, algemada, com vodca correndo no lugar de sangue.

Outro tapa nas nádegas.

- Ande de um lado para o outro!

Maria começou a andar, obedecendo aos comandos "pare", "vire para a direita",

"sente-se", "abra as pernas". Vez por outra, mesmo sem nenhum motivo, levava uma palmada, e sentia a dor, sentia a humilhação - que era mais poderosa e forte que a dor - e sentia-se em outro mundo, onde não existia mais nada, e isso era uma sensação quase religiosa, anular-se por completo, servir, perder a idéia do ego, dos desejos, da própria vontade. Estava completamente molhada, excitada, sem compreender o que acontecia.

- Coloque-se de novo de joelhos!

Como mantinha sempre a cabeça baixa, em sinal de obediência e humilhação, Maria não podia ver exatamente o que estava se passando; mas notava que, em um outro universo, outro planeta, aquele homem estava ofegante, cansado de estalar o chicote e espancar- lhe as nádegas com a palma da mão aberta, enquanto ela se sentia cada vez mais cheia de força e energia. Agora tinha perdido a vergonha, e não se incomodava de mostrar que estava gostando, começou a gemer, pediu que ele lhe tocasse o sexo, mas o homem, em vez disso, agarrou-a e atirou-a na cama.

Com violência - mas uma violência que ela sabia não ia lhe causar nenhum mal -

abriu suas pernas e amarrou cada uma delas em um lado da cama. As mãos algemadas nas costas, as pernas abertas, a mordaça na boca, quando ele iria penetrá- la? Não via que ela já estava pronta, que queria servir- lhe, era sua escrava, seu animal, seu objeto, faria qualquer coisa que ele mandasse?

- Você gostaria que eu a arrebentasse toda?

Ela viu que ele encostava o cabo do chicote em seu sexo. Esfregou-o de cima a baixo, e na hora em que tocou em seu clitóris, ela perdeu o controle. Não sabia havia quanto tempo estavam ali, não imaginava quantas vezes tinha sido espancada, mas de repente veio o orgasmo, o orgasmo que dezenas, centenas de homens, em todos aqueles meses, jamais conseguiram despertar. Uma luz explodiu, ela sentia que entrava em uma espécie de buraco negro em sua própria alma, onde a dor intensa e o medo se misturavam com o prazer total, aquilo a empurrava além de todos os limites que conhecera, e Maria gemeu, gritou com a voz sufocada pela mordaça, sacudiu-se na cama, sentindo que as algemas lhe cortavam os pulsos e as tiras de couro lhe machucavam os tornozelos, mexeu-se como nunca justamente porque não podia se mexer, gritou como jamais tinha gritado, porque tinha uma mordaça na boca e ninguém poderia escutá-la. Aquilo era a dor e o prazer, o cabo do chicote pressionando o clitóris cada vez mais forte, e o orgasmo saindo pela boca, pelo sexo, pelos poros, pelos olhos, por toda a sua pele.

Entrou em uma espécie de transe, e pouco a pouco foi descendo, descendo, já não havia mais o chicote entre as pernas, apenas os cabelos molhados pelo suor abundante, e mãos carinhosas que lhe retiravam as algemas e desatavam as tiras de couro dos seus pés.

Ela ficou ali deitada, confusa, incapaz de olhar o homem porque estava com vergonha de si mesma, de seus gritos, de seu orgasmo. Ele lhe acariciava os cabelos, e também arfava

- mas o prazer tinha sido exclusivamente seu; ele não tivera nenhum momento de êxtase.

O seu corpo nu abraçou aquele homem co mpletamente vestido, exausto de tantas ordens, tantos gritos, tanto controle da situação. Agora não sabia o que dizer, como continuar, mas estava segura, protegida, porque ele a convidara a ir até uma parte sua que não conhecia, era seu protetor e seu mestre.

Começou a chorar, e ele pacientemente esperou que terminasse.

- O que você fez comigo? - dizia entre lágrimas.

- O que você queria que eu fizesse.

Nada disso fazia sentido, porque não é o que contam as histórias, não é assim na vida real. Mas ali era um mundo de fantasia, ela estava cheia de luz, e ele parecia opaco, exaurido.

- Pode ir quando quiser - disse Terence.

- Não quero ir, quero entender.

- Não há o que entender.

Ela levantou-se, na beleza e intensidade de sua nudez, e serviu duas taças de vinho.

Acendeu dois cigarros, e lhe deu um os papéis estavam trocados, era a senhora que servia o escravo, recompensando-o pelo prazer que lhe dera.

- Vou me vestir, e vou embora. Mas gostaria de conversar um pouco.

- Não há o que conversar. Era isso que eu queria, e você foi maravilhosa. Estou cansado, tenho que voltar amanhã para Londres.

Ele deitou-se e fechou os olhos. Maria não sabia se estava fingindo dormir, mas não importava; fumou o cigarro com prazer, bebeu lentamente seu copo de vinho com o rosto colado na vidraça, olhando o lago em frente e desejando que alguém, na outra margem, a visse assim - nua, plena, satisfeita, segura.

Vestiu-se, saiu sem dizer adeus, e sem se importar se abria ou não a porta, porque não tinha certeza se queria voltar.

 

Terence escutou a porta bater, esperou para ver se ela não voltava dizendo que tinha esquecido alguma coisa, e só depois de alguns minutos levantou-se e acendeu outro cigarro.

 

A menina tinha estilo, pensou. Soubera agüentar o chicote, embora este fosse o mais comum, o mais antigo, e o menor de todos os suplícios. Por um momento, lembrou-se da primeira vez que experimentara esta misteriosa relação entre dois seres que desejam se aproximar, mas só conseguem isso infligindo sofrimento aos outros.

 

Lá fora, milhões de casais praticavam sem se dar conta, todos os dias, a arte do sadomasoquismo. Iam para o trabalho, voltavam, reclamavam de tudo, agrediam ou eram agredidos pela mulher, sentiam-se miseráveis - mas profundamente ligados à própria infelicidade, sem saber que bastava um gesto, um "até nunca mais", para se libertarem da opressão. Terence experimentara isso com sua primeira esposa, uma famosa cantora inglesa; vivia torturado por ciúmes, criando cenas, passando dias sob o efeito de calmantes, e noites embriagado de álcool. Ela o amava, não entendia por que agia assim, ele a amava -

tampouco entendia seu próprio comportamento. Mas era como se a agonia que um infligia ao outro fosse necessária, fundamental para a vida.

 

Certa vez, um músico - que ele considerava muito estranho, porque parecia normal demais naquele meio de gente exótica esqueceu um livro no estúdio. A Vênus Castigadora, de Leopold von Sacher-Masoch. Terence começou a folheá- lo e, à medida que lia, compreendia melhor a si mesmo:

 

A linda mulher despiu-se e pegou um longo chicote, com um pequeno cabo, que prendeu ao pulso. "Você pediu", disse ela. "Então vou chicoteá- lo." "Faça isso'; sussurou seu amante. "Eu lhe imploro."

 

Sua mulher estava do outro lado da divisória de vidro do estúdio, ensaiando. Tinha pedido que desligasse o microfone que permitia aos técnicos escutarem tudo, e fora obedecida. Terence pensava que talvez estivesse marcando um encontro com o pianista, e deu-se conta: ela o levava à loucura, mas parecia que ele já tinha se acostumado a sofrer, e não podia viver sem aquilo.

 

"Vou chicoteá- lo", dizia a mulher despida, no romance que inha em mãos. "Faça isso, eu lhe imploro."

 

Ele era bonito, tinha poder na gravadora, por que precisava levar a vida que estava levando?

 

Porque gostava. Merecia sofrer muito, já que a vida tinha sido muito boa para ele, e não era digno de todas aquelas bênçãos - dinheiro, respeito, fama. Achava que sua carreira o estava levando a um ponto em que passaria a depender do sucesso, e aquilo o assustava, porque já tinha visto muita gente despencar das alturas.

 

Leu o livro. Começou a ler tudo que lhe caía nas mãos a respeito da misteriosa união entre dor e prazer. A mulher descobriu os vídeos que alugava, os livros que escondia, perguntou o que era aquilo, se ele estava doente. Terence respondeu que não, era uma pesquisa para o visual de um novo trabalho que ela devia fazer. E sugeriu, como quem não quer nada:

 

"Talvez devêssemos experimentar."

 

Experimentaram. No começo com muita timidez, baseados apenas nos manuais que encontravam em lojas pornográficas. Aos poucos foram desenvolvendo novas técnicas, indo até os limites, correndo riscos - mas sentindo que o casamento estava cada vez mais sólido. Eram cúmplices de algo escondido, proibido, condenado.

 

A experiência dos dois transformou-se em arte: criaram novos figurinos, couro e tachas de metal. A mulher entrava em cena com um chicote, ligas, botas, e levava a platéia ao delírio. O novo disco foi para o primeiro lugar das paradas de sucesso na Inglaterra, e dali seguiu uma carreira vitoriosa em toda a Europa. Terence se surpreendia ao ver como a juventude aceitava seus delírios pessoais com tanta naturalidade, e sua única explicação era que desta maneira a violência contida podia se manifestar de forma intensa, mas inofensiva.

 

O chicote passou a ser o símbolo do grupo, começou a ser reproduzido em camisetas, tatuagens, adesivos, cartões-postais.

 

A formação intelectual de Terence o fez buscar a origem daquilo tudo, para entender melhor a si mesmo.

Não eram, como disse ra para a prostituta em seu encontro, os penitentes que procuravam afastar a peste negra. Desde a noite dos tempos, o homem entendera que o sofrimento, uma vez encarado sem temor, era seu passaporte para a liberdade.

Egito, Roma e Pérsia já tinham a noção de que, se um homem se sacrifica, ele salva o país e seu mundo. Na China, se acontecia uma catástrofe natural, o imperador era castigado, por ser ele o representante da divindade na terra. Os melhores guerreiros de Espana, na antiga Grécia, eram chicoteados uma vez por ano, da manhã até a noite, em homenagem à deusa Diana enquanto a multidão gritava palavras de incentivo, pedindo que agüentassem a dor com dignidade, pois ela os prepararia para o mundo das guerras. No final do dia, os sacerdotes examinavam as feridas deixadas nas costas dos guerreiros, e através delas previam o futuro da cidade.

Os padres do deserto, uma antiga comunidade cristã do século IV que se reunia em torno de um mosteiro na Alexandria, usavam a flagelação como meio de afastar os demônios, ou demonstrar a inutilidade do corpo durante a busca espiritual. A história dos santos estava cheia de exemplos - Santa Rosa corria pelo jardim, enquanto os espinhos feriam sua carne; São Domingos Loricatus chicoteava-se regularmente todas as noites antes de dormir; os mártires se entregavam voluntariamente à lenta morte na cruz ou nos dentes de animais selvagens. Todos diziam que a dor, uma vez superada, era capaz de levar ao êxtase religioso.

Estudos recentes, não confirmados, indicavam que certo tipo de fungo com propriedades alucinógenas se desenvolvia nas feridas, o que causava as visões. O prazer parecia ser tanto, que a prática logo deixou os conventos e começou a ganhar o mundo.

Em 1718, foi publicado o Tratado de autoflagelação, que ensinava como descobrir o prazer através da dor, mas sem causar dano ao corpo. No final daquele século, existiam dezenas de lugares em toda a Europa onde as pessoas sofriam para chegar à alegria. Há registros de reis e princesas que se faziam flagelar por seus escravos, até descobrirem que o prazer estava não apenas em apanhar, mas também em aplicar a dor - embora fosse mais exaustivo e menos gratificante.

Enquanto fumava seu cigarro, Terence experimentava um certo prazer em saber que a maior parte da humanidade jamais podia compreender o que ele estava pensando.

Não tinha importância: pertencer a um clube fechado, só os eleitos tinham acesso.

Lembrou-se de novo de como o tormento de ser casado se transformou na maravilha de ser casado. Sua mulher sabia que visitava Genève com este propósito, e não se incomodava -

pelo contrário, neste mundo doente, ela ficava feliz por seu marido conseguir a recompensa que desejava depois de uma semana de trabalho árduo.

Enquanto fumava seu cigarro olhando o lago diante da janela, estava sentindo de novo a vontade de viver. A menina que acabara de sair do quarto havia entendido tudo. Sentia que sua alma estava próxima dela, embora não estivesse ainda pronto para se apaixonar, porque amava sua mulher. Mas gostou de pensar que era livre e podia sonhar com um novo relacionamento.

Faltava apenas fazê- la experimentar o que havia de mais difícil: transformá - la na Vênus Castigadora, na Dominatrix, na Senhora, capaz de humilhar e punir sem piedade. Se passasse na prova, estaria pronto para abrir o seu coração e deixá- la entrar.

 

Do diário de Maria, ainda embriagada pela vodca e pelo prazer: Quando eu não tinha nada a perder, eu recebi tudo. Quando deixei de ser quem era, encontrei a mim mesma.

Quando conhecia humilhação e a submissão total fiquei livre. Não sei se estou doente, se tudo aquilo foi um sonho, ou se acontece apenas uma vez. Sei que posso viver sem isso, mas gostaria de encontrá-lo de novo, de repetir a experiência, ir mais longe do que fui.

 

Estava um pouco assustada com a dor, mas ela não era tão forte quanto a humilhação

- era apenas um pretexto. No momento em que tive o primeiro orgasmo em muitos meses, apesar dos muitos homens e das muitas coisas diferentes que fizeram com meu corpo, sentime - será que isso é possível? - mais perto de Deus. Lembrei- me do que ele disse a respeito da peste negra, do momento em que os flagelantes, ao oferecerem sua dor pela salvação da humanidade, encontravam nela o prazer. Eu não queria salvara humanidade, ou a ele, ou a mim mesma. Estava apenas ali.

O sexo é a arte de controlar o descontrole.

 

Não era um teatro, estavam na estação de trem de verdade, a pedido de Maria, que gostava de uma pizza só encontrada ali. Não fazia mal ser um pouco caprichosa. Ralf devia ter aparecido um dia antes, quando então ainda era uma mulher em busca de amor, lareira, vinho, desejo. Mas a vida escolhera de maneira diferente, e hoje passara o dia inteiro sem precisar fazer o seu exercício de concentrar-se nos sons e no presente, simplesmente porque não pensara nele, havia descoberto coisas que lhe interessavam mais.

 

 

O que fazer com o homem ao seu lado, comendo uma pizza de que talvez não gostasse, apenas para passar o tempo, e aguardar o momento de irem até sua casa? Quando ele entrara na boate e lhe oferecera um drínk, Maria pensara em dizer que já não tinha mais interesse, que procurasse outra pessoa; por outro lado, tinha uma imensa necessidade de conversar com alguém sobre a noite anterior.


Date: 2015-12-17; view: 643


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