José Saramago
ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA
O disco amarelo iluminou-se. Dois dos automóveis da frente
aceleraram antes que o sinal vermelho aparecesse. Na
passadeira de peões surgiu o desenho do homem verde. A gente
que esperava começou a atravessar a rua pisando as faixas
brancas pintadas na capa negra do asfalto, não há nada que
menos se pareça com uma zebra, porém assim lhe chamam. Os
automobilistas, impacientes, com o pé no pedal da embraiagem,
mantinham em tensão os carros, avançando, recuando, como
cavalos nervosos que sentissem vir no ar a chibata. Os peões
já acabaram de passar, mas o sinal de caminho livre para os
carros vai tardar ainda alguns segundos, há quem sustente que
esta demora, aparentemente tão insignificante, se a
multiplicarmos pelos milhares de semáforos existentes na
cidade e pelas mudanças sucessivas das três cores de cada um,
é uma das causas mais consideráveis dos engorgitamentos da
circulação automóvel, ou engarrafamentos, se quisermos usar o
termo corrente.
O sinal verde acendeu-se enfim, bruscamente os carros
arrancaram, mas logo se notou que não ti nh am arranc ado
todos por igual. O primeiro da fila do meio está parado, deve
haver ali um problema mecanico qualquer, o acelerador solto, a
alavanca da caixa de velocidades que se encravou, ou uma
avaria do sistema hidráulico, blocagem dos travões, falha do
circuito eléctrico, se é que não se lhe acabou
simplesmente a gasolina, não seria a primeira vez que se dava o
caso. O novo ajuntamento de peões que está a formar-se nos
passeios vê o condutor do automóvel imobilizado a esbracejar
por trás do pára-brisas, enquanto os carros atrás dele buzinam
frenéticos. Alguns condutores já saltaram para a rua,
dispostos a empurrar o automóvel empanado para onde não fique
a estorvar o transito, batem furiosamente nos v idros
fechados, o homem que está lá dentro vira a cabeça para eles,
a um lado, a outro, vê-se que grita qualquer coisa, pelos
movimentos da boca percebe-se que repete uma palavra, uma não,
duas, assim é realmente, consoante se vai ficar a saber quando
alguém, enfim, conseguir abrir uma porta, Estou cego.
Ninguém o diria. Apreciados como neste momento é possível,
apenas de relance, os olhos do homem parecem sãos, a íris
apresenta-se nítida, luminosa, a esclerótica branca, compacta
como porcelana. As pálpebras arregaladas, a pele crispada da
cara, as sobrancelhas de repente revoltas, tudo isso, qualquer
o pode verificar, é que se descompôs pela angústia. Num
movimento rápido, o que estava à vista desapareceu atrás dos
punhos fechados do homem, como se ele ainda quisesse reter no
interior do cérebro a última imagem recolhida, uma luz
vermelha, redonda, num semáforo. Estou cego, estou cego,
repetia com desespero enquanto o ajudavam a sair do carro, e
as lágrimas, rompendo, tornaram mais brilhantes os olhos que
ele dizia estarem mortos. Isso passa, vai ver que isso passa,
às vezes são nervos, disse uma mulher. O semáforo já tinha
mudado de cor, alguns transeuntes curiosos aproximavam-se do
grupo, e os condutores lá de trás, que não sabiam o que estava
a acontecer, protestavam contra o que julgavam ser um acidente
de transito vulgar, farol partido, guarda-lamas amolgado, nada
que justificasse a confusão, Chamem a polícia, gritavam, tirem
daí essa lata. O cego implorava, Por favor, alguém que me leve
a casa. A mulher que falara de nervos foi de opinião que se
devia chamar uma ambulancia, transportar o pobrezinho ao
hospital, mas 0 cego disse que isso não, não queria tanto, só
pedia que 0 encaminhassem até à porta do prédio onde morava,
Fica aqui muito perto, seria um grande favor que me faziam. E
o carro, perguntou uma voz. Outra voz respondeu, A chave
está no sítio, põe-se em cima do passeio. Não é preciso,
interveio uma terceira voz, eu tomo conta do carro e acompanho
este senhor a casa. Ouviram-se murmúrios de aprovação. O cego
sentiu que o tomavam pelo braço, Venha, venha comigo,
dizia-lhe a mesma voz. Ajudaram-no a sentar-se no lugar ao
lado do condutor, puseram-lhe o cinto de segurança, Não vejo,
não vejo, murmurava entre o choro, Diga-me onde mora, pediu o
outro. Pelas janelas do carro espreitavam caras vorazes,
gulosas da novidade. O cego ergueu as mãos diante dos olhos,
moveu-as, Nada, é como se estivesse no meio de um nevoeiro, é
como se tivesse caído num mar de
Mas a cegueira não é assim, disse o outro, a cegueira dizem
que é negra, Pois eu vejo tudo branco, Se calhar a mulherzinha
tinha razão, pode ser coisa de nervos, os nervos são o diabo,
Eu bem sei o que é, uma desgraça, sim, uma desgraça, Diga-me
onde mora, por favor, ao mesmo tempo ouviu-se o arranque do
motor. Balbuciando, como se a falta de visão lhe tivesse
enfraquecido a memória, o cego deu uma direcção, depois disse,
Não sei como lhe hei-de agradecer, e o outro respondeu, Ora,
não tem importancia, hoje por si, amanhã por mim, não sabemos
para o que estamos guardados, Tem razão, quem me diria, quando
saí de casa esta manhã, que estava para me acontecer uma
fatalidade como esta. Estranhou que continuassem parados, Por
que é que não andamos, perguntou, O sinal está no vermelho,
respondeu o outro, Ah, fez o cego, e pôs-se a chorar outra
vez. A partir de agora deixara de poder saber quando o sinal
estava vermelho.
Tal como o cego havia dito, a casa ficava perto. Mas os
passeios estavam todos ocupados por automóveis, não
encontraram espaço para arrumar o carro, por isso foram
obrigados a ir procurar sítio numa das ruas transversais. Ali,
como por causa da estreiteza do passeio a porta do assento ao
lado do condutor ia ficar a pouco mais de um palmo da parede.
o cego, para não passar pela angústia de arrastar-se de um
assento ao outro, com a alavanca da caixa de velocidades e o
volante a atrapalhá-lo, teve de sair primeiro. Desampara
do, no meio da rua, sentindo que o chão lhe fugia debaixo
dos pés, tentou conter a aflição que lhe subia pela garganta.
Agitava as mãos à frente da cara, nervosamente, como se
nadasse naquilo a que chamara um mar de leite, mas a boca
já se lhe abria para lançar um grito de socorro, foi no últi
mo momento que a mão do outro lhe tocou de leve no bra
ço, Acalme-se, eu levo-o. Foram andando muito devagar,
com o medo de cair o cego arrastava os pés, mas isso fa
zia-o tropeçar nas irregularidades da calçada, Tenha paciên
cia, já estamos quase a chegar, murmurava o outro, e um
pouco mais adiante perguntou, Está alguém em sua casa que
possa tomar conta de si, e o cego respondeu, Não sei, a
minha mulher ainda não deve ter vindo do trabalho, eu hoje
é que calhei sair mais cedo, e logo me sucede isto, Verá que
não vai ser nada, nunca ouvi dizer que alguém tivesse fica
do cego assim de repente, Que eu até me gabava de não usar
óculos, nunca precisei, Então, já vê. Tinham chegado à por
ta do prédio, duas mulheres da vizinhança olharam curiosas
a cena, vai ali aquele vizinho levado pelo braço, mas nenhu
ma delas teve a ideia de perguntar, Entrou-lhe alguma coisa
para os olhos, não lhes ocorreu, e tão-pouco ele lhes pode
ria responder, Sim, entrou-me um mar de leite. Já dentro do
prédio, o cego disse, Muito obrigado, desculpe o transtorno
que lhe causei, agora eu cá me arranjo, Ora essa, eu subo
consigo, não ficaria descansado se o deixasse aqui. Entraram
dificilmente no elevador apertado, Em que andar mora, No
terceiro, não imagina quanto lhe estou agradecido, Não me
agradeça, hoje por si, Sim, tem razão, amanhã por si. O ele
vador parou, saíram para o patamar, Quer que o ajude a abrir
a porta, Obrigado, isso eu acho que posso fazer. Tirou do
bolso um pequeno molho de chaves, tacteou-as, uma por
uma, ao longo do denteado, disse, Esta deve de ser. e, apal
pando a fechadura com as pontas dos dedos da mão esquer
da, tentou abrir a porta, Não é esta, Deixe-me cá ver, eu
ajudo-o. A porta abriu-se à terceira tentativa. Então o cego
perguntou para dentro, Estás aí. Ninguém respondeu, e ele,
Era o que eu dizia, ainda não veio. Levando as mãos adian
te, às apalpadelas, passou para o corredor, depois voltou-se
cautelosamente, orientando a cara na direcção em que calculava
encontrar-se o outro, Como poderei agradecer-lhe, disse, Não
fiz mais que o meu dever, justificou o bom samaritano, não me
agradeça, e acrescentou, Quer que o ajude a instalar-se, que
lhe faça companhia enquanto a sua mulher não chega. O zelo
pareceu de repente suspeito ao cego, evidentemente não iria
deixar entrar em casa uma pessoa desconhecida que, no fim de
contas, bem poderia estar a tramar, naquele preciso momento,
como haveria de reduzir, atar e amordaçar o infeliz cego sem
defesa, para depois deitar a mão ao que encontrasse de valor.
Não é preciso, não se incomode, disse, eu fico bem, e repetiu
enquanto ia fechando a porta lentamente, Não é preciso, não é
preciso.
Suspirou de alívio ao ouvir o ruído do elevador descendo. Num
gesto maquinal, sem se lembrar do estado em que se encontrava,
afastou a tampa do ralo da porta e espreitou para fora. Era
como se houvesse um muro branco do outro lado. Sentia o
contacto do aro metálico na arcada supraciliar, roçava com as
pestanas a minúscula lente, mas não os podia ver, a insondável
brancura cobria tudo. Sabia que estava na sua casa,
reconhecia-a pelo odor, pela atmosfera, pelo silêncio,
distinguia os móveis e os objectos só de tocar-lhes,
passar-lhes os dedos por cima, ao de leve, mas era também como
se tudo isto estivesse já a diluir-se numa espécie de estranha
dimensão, sem direcções nem referências, sem norte nem sul,
sem baixo nem alto. Como toda a gente provavelmente o fez,
jogara algumas vezes consigo mesmo, na adolescência, ao jogo
do E se eu fosse cego, e chegara à conclusão, ao cabo de cinco
minutos com os olhos fechados, de que a cegueira, sem dúvida
alguma uma terrível desgraça, poderia, ainda assim, ser
relativamente suportável se a vítima de tal infelicidade
tivesse conservado uma lembrança suficiente, não só das cores,
mas também das formas e dos planos, das superfícies e dos
contornos, supondo, claro está, que a dita cegueira não fosse
de nascença. Chegara mesmo ao ponto de pensar que a escuridão
em que os cegos viviam
não era, afinal, senão a simples ausência da luz, que o que
chamamos cegueira era algo que se limitava a cobrir a
aparência dos seres e das coisas, deixando-os intactos por
trás do seu véu negro. Agora, pelo contrário, ei-lo que se
encontrava mergulhado numa brancura tão luminosa, tão total,
que devorava, mais do que absorvia, não só as cores, mas as
próprias coisas e seres, tornando-os, por essa maneira,
duplamente invisíveis.
Ao mover-se em direcção à sala de estar, e apesar da prudente
lentidão com que avançava, deslizando a mão hesitante ao longo
da parede, fez cair ao chão uma jarra de flores de que não
estava à espera. Tinha-se esquecido dela, ou então fora a
mulher que a deixura ali quando saiu para o emprego, com a
intenção de colocá-la depois em lugar adequado. Baixou-se para
avaliar a gravidade do desastre. A água espalhara-se pelo chão
encerado. Quis recolher as flores, mas não pensou nos vidros
partidos, uma lasca longa, finíssima, espetou-se-lhe num dedo,
e ele tornou a lacrimejar de dor, de abandono, como uma
criança, cego de brancura no meio duma casa que, com o
declinar da tarde, já começava a escurecer. Sem largar as
flores, sentindo o sangue a escorrer, torceu-se todo para
tirar o lenço do bolso e, como pôde, envolveu o dedo. Depois,
apalpando, tropeçando, contornando os móveis, pisando
cautelosamente para não enfiar os pés nos tapetes, alcançou o
sofá onde ele e a mulher viam a televisão. Sentou-se, pôs as
flores em cima das pernas, e, com muito cuidado, desenrolou o
lenço. O sangue, pegajoso ao tacto, perturbou-o, pensou que
devia ser porque não podia vê-lo, o seu sangue tornara-se numa
viscosidade sem cor, em algo de certo modo alheio que apesar
disso lhe pertencia, mas como uma ameaça de si contra si
mesmo. Devagarinho, apalpando levemente com a mão boa,
procurou a delgada esquírola de vidro, aguda como uma espada
minúscula, e, fazendo pinça com as unhas do polegar e do
indicador, conseguiu extraí-la inteira. Tornou a envolver no
lenço o dedo maltratado, com força para estancar o sangue. e,
rendido, exausto, reclinou-se no sofá. Um minuto mais tarde,
por
uma dessas nao raras desistências do corpo, que escolhe, para
renunciar, certos momentos de angústia ou de desespero,
quando, se por a exclusiva lógica se governasse, todos os seus
nervos deveriam estar despertos e tensos, entrou-lhe um
espécie de quebranto, mais sonolência do que sono autêntico,
mas tão pesada como ele. Imediatamente sonhou que estava a
jogar o jogo do E se eu fosse cego, sonhava que fechava e
abria os olhos muitas vezes, e que, de cada vez, como se
estivesse a regressar de uma viagem, encontrava à sua espera,
firmes e inalteradas, todas as formas e cores, o mundo como o
conhecia. Por debaixo desta certeza tranquilizadora percebia,
contudo, o remoer surdo de uma dúvida, talvez se tratasse de
um sonho enganador, um sonho de que teria de acordar mais cedo
ou mais tarde, sem saber, nesse momento, que realidade estaria
à sua espera. Depois, se tal palavra tem algum sentido
aplicada a um quebrantamento que não durou mais que uns
instantes, e já naquele estado de meia vig~1ia que vai
preparando o despertar, considerou seriamente que não estava
bem manter-se numa tal indecisão, acordo, não acordo, acordo,
não acordo, sempre chega uma altura em que não há outro
remédio que arriscar, Eu que faço aqui, com estas flores em
cima das pernas e os olhos fechados, que parece que estou com
medo de os abrir, Que fazes tu aí, a dormir, com essas flores
em cima das pernas, perguntava-lhe a mulher.
Não esperara pela resposta. Ostensivamente, pusera-se a
recolher os restos da jarra e a enxugar o soalho, enquanto ia
resmungando, com uma irritação que não procurava dissimular,
Bem o poderias ter feito tu, em lugar de te deitares para aí a
dormir, como se não fosse nada contigo. Ele não falou,
protegia os olhos por trás das pálpebras apertadas,
subitamente agitado por um pensamento, E se eu abro os olhos e
vejo, perguntava-se, tomado por uma ansiosa esperança. A
mulher aproximou-se, reparou no lenço manchado de sangue, o
seu agastamento apagou-se num instante, Pobrezinho, como foi
que te aconteceu isto, perguntava compadecida, enquanto
desfazia a improvisada atadura. Então ele. com todas as suas
forças, desejou ver a mulher ajoelhada aos seus pés, ali, como
sabia que estava, e depois. já certo de que a não veria, abriu
os olhos, Até que enfim que acordaste, meu dorminhoco, disse
ela, sorrindo. Fez-se um silêncio~ e ele disse, Estou cego,
não te vejo. A mulher ralhou, Deixa-te de brincadeiras
estúpidas, há coisas com que não devemos brincar, Quem me dera
que fosse uma brincadeira, a verdade é que estou mesmo cego.
não vejo nada, Por favor, não me assustes, olha para mim,
aqui, estou aqui, a luz está acesa, Sei que aí estás, ouço-te,
toco-te, calculo que tenhas acendido a luz, mas eu estou cego.
Ela começou a chorar, agarrou-se a ele, Não é verdade, dize-me
que não é verdade. As flores tinham escorregado para o chão,
sobre o lenço manchado, o sangue recomeçara a pingar do dedo
ferido, e ele, como se por outras palavras quisesse dizer Do
mal o menos, murmurou, Vejo tudo branco, e logo deixou
aparecer um sorriso triste. A mulher sentou-se ao lado dele,
abra,cou-o muito, beijou-o com cuidado na testa, na cara,
suavemente nos olhos, Verás que isso passa, tu não estavas
doente, ninguém fica cego assim, de um momento para outro,
Talvez, Conta-me como foi, o que sentiste, quando, onde, não,
ainda não, espera, a primeira coisa que temos de fazer é falar
com um médico dos olhos, conheces algum, Não conheço, nem tu
nem eu usamos óculos, E se te levasse ao hospital, Para olhos
que não vêem, não deve haver serviços de urgência, Tens razão,
o melhor é irmos directamente a um médico, vou procurar na
lista dos telefones, um que tenha consultório perto daqui.
Levantou-se, ainda perguntou, Notas alguma diferença, Nenhuma,
disse ele, Atenção, vou apagar a luz, já me dirás, agora,
Nada, Nada, quê, Nada, vejo sempre o mesmo branco, para mim é
como se não houvesse noite.
Ele ouvia a mulher passar rapidamente as folhas da lista
telefónica, fungando para segurar as lágrimas, suspirando,
dizendo enfim, Este deve servir, oxalá nos possa atender.
Marcou um número, perguntou se era do consultório, se o senhor
doutor estava, se podia falar com ele, não, não, o senhor
doutor não me conhece, é por causa de um caso
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muito urgente, sim, por favor, compreendo, então digo-lho a
si, mas peço-lhe que transmita ao senhor doutor, é que o meu
marido ficou cego de repente, sim, sim, como lhe estou a
dizer, de repente, não, não é doente do senhor doutor, o meu
marido não usa óculos, nunca usou, sim, tinha uma óptima
vista, como eu, eu também vejo bem, ah, muito obrigada, eu
espero, eu espero, sim, senhor doutor, sim, de repente, diz
que vê tudo branco, não sei como foi, nem tive tempo de lhe
perguntar, acabo de chegar a casa e encontrei-o neste estado,
quer que lhe pergunte, ah, quanto lhe agradeço, senhor doutor,
vamos imediatamente, imediatamente. O cego levantou-se,
Espera, disse a mulher, deixa-me curar primeiro esse dedo,
desapareceu por uns momentos, voltou com um frasco de água
oxigenada, outro de mercurocromo, algodão, uma caixinha de
pensos rápidos. Enquanto o tratava perguntou-lhe, Onde foi que
deixaste o carro, e subitamente, Mas tu, assim como estás, não
podias conduzir, ou já estavas em casa quando, Não, foi na
rua, quando estava parado num sinal vermelho, uma pessoa fez o
favor de me trazer, o carro ficou aí na rua ao lado, Bom,
então descemos, esperas à porta que eu o vou buscar, onde foi
que puseste as chaves, Não sei, ele não mas devolveu, Ele,
quem, O homem que me trouxe a casa, foi um homem, Tê-las-á
largado por aí, vou ver, Não vale a pena procurares, ele não
entrou, Mas as chaves têm de estar em algum sítio, O mais
certo foi ter-se ele esquecido, levou-as sem se dar conta, Era
mesmo isto o que nos faltava, Usa as tuas, depois logo se vê,
Bem, vamos, dá-me cá a mão. O cego disse, Se vou ter de ficar
assim, acabo com a vida, Por favor, não digas disparates, para
infelicidade já basta o que nos sucedeu, Eu é que estou cego,
não tu, tu não podes saber o que me sucedeu, O médico vai
pôr-te bom, verás, Verei.
Saíram. Em baixo, no vestíbulo da escada, a mulher acendeu a
luz e sussurrou-lhe ao ouvido, Espera-me aqui, se algum
vizinho aparecer fala-lhe com naturalidade, diz que estás à
minha espera, olhando para ti ninguém pensará que não vês,
escusamos de estar já a dar notícia da nossa vida, Sim,
mas não te demores. A mulher saiu a correr. Nenhum vizinho
entrou ou saiu. Por experiência, o cego sabia que a escada só
estaria iluminada enquanto se ouvisse o mecanisino do contador
automático, por isso ia premindo o disparador de cada vez que
se fazia silêncio. A luz, esta luz, para ele, tornara-se em
ruído. Não entendia por que se demorava a mulher tanto, a rua
era ali ao lado, uns oitenta, cem metros, Se nos atrasamos
muito, o médico vai-se embora, pensou. Não pôde evitar um
gesto maquinal, levantar o punho esquerdo e baixar os olhos
para ver as horas. Apertou os lábios como se o tivesse
traspassado uma súbita dor, e agradeceu à sorte não ter
aparecido naquele momento um vizinho, pois ali mesmo, à
primeira palavra que ele lhe dirigisse, se teria desfeito em
lágrimas. Um carro parou na rua, Até que enfim, pensou, mas
acto contlnuo estranhou o barulho do motor, Isto é diesel,
isto é um táxi, disse, e carregou uma vez mais no botão da
luz. A mulher vinha a entrar, nervosa, transtornada, O
santinho do teu protector, a boa alma, levou-nos o carro, Não
pode ser. não deves ter visto bem, Claro que vi bem, eu vejo
bem, as últimas palavras saíram-lhe sem ela querer, Tinhas-me
dito que 0 carro estava na rua ao lado, emendou, e não está,
ou então deixaram-no noutra rua, Não, não, foi nessa, tenho a
certeza, Pois então levou sumiço, Nesse caso, as chaves,
Aproveitou-se da tua desorientação, da aflição em que estavas,
e roubou-nos, E eu que nem o quis deixar entrar em casa, por
medo, se tivesse ficado a fazer-me companhia até tu chegares,
não poderia ter roubado o carro, Vamos, temos o táxi à espera,
juro-te que era capaz de dar um ano de vida para que esse
malandro cegasse também, Não fales tão alto, E lhe roubassem
tudo quanto tenha, Pode ser que apareça, Ah, pois, amanhã
bate-nos aí à porta a dizer que foi uma distracção, a pedir
desculpa, e a saber se estás melhorzinho.
Mantiveram-se calados até ao consultório do médico. Ela
procurava afastar do pensamento 0 roubo do carro, apertava
carinhosamente as mãos do marido entre as suas, enquanto ele,
com a cabeça baixa para que 0 motorista não pudesse
~0
ver-lhe os olhos pelo retrovisor, não parava de perguntar-se
como era possível que tão grande desgraça lhe estivesse a
acontecer a ele, A mim, porquê. Aos ouvidos chegavam-lhe os
ruídos do transito, uma ou outra voz mais alta quando o táxi
parava, também às vezes sucede, ainda dormimos e já os sons
exteriores vão repassando o véu da inconsciência em que ainda
estamos envolvidos, como num lençol branco. Como num lençol
branco. Abanou a cabeça suspirando, a mulher tocou-lhe ao de
leve na face, maneira de dizer Sossega, estou aqui, e ele
deixou pender a cabeça para o ombro dela, sem se importar com
o que pensaria o motorista, Estivesses tu como eu, e não
poderias ir aí a guiar, pensou infantilmente, e, sem reparar
no absurdo do enunciado, congratulou-se por, em meio do seu
desespero, ter sido ainda capaz de formular um raciocínio
lógico. Ao sair do táxi, auxiliado discretamente pela mulher,
parecia calmo, mas, à entrada do consultório, onde iria
conhecer a sua sorte, perguntou-lhe num murmúrio que tremia,
Como estarei eu quando sair daqui, e abanou a cabeça como quem
já nada espera.
A mulher informou a empregada da recepção de que era a pessoa
que há meia hora tinha telefonado por causa do marido, e ela
fê-los passar a uma pequena sala onde outros doentes
esperavam. Havia um velho com uma venda preta num dos olhos,
um rapazinho que parecia estrábico acompanhado por uma mulher
que devia de ser a mãe, uma rapariga
nova de óculos escuros, duas outras pessoas sem sinais
particulares à vista, mas nenhum cego, os cegos não vão ao
oftalmologista. A mulher guiou o marido para uma cadeira
livre, e, por não sobrar outro assento, ficou de pé ao lado
dele, Vamos ter de esperar, murmurou-lhe ao ouvido. Ele
percebeu porquê, ouvira vozes dos que ali se encontravam,
| agora afligia-o uma preocupação diferente, pensava que
quan
to mais o médico tardasse a examiná-lo, mais profunda a
I cegueira se tornaria, e portanto incurável, sem remédio.
Mexeu-se na cadeira, inquieto, ia comunicar as suas apreen
sões à mulher, mas nesse momento a porta abriu-se e a em
pregada disse, Os senhores, por favor, passem, e dirigindo-se
l
2/
aos outros doentes, Foi ordem do senhor doutor, o caso deste
senhor é urgente. A mãe do rapaz estrábico protestou que 0
direito é o direito, e que ela estava em primeiro lugar, e à
espera há mais de uma hora. Os outros doentes apoiaram-na em
voz baixa, mas nenhum deles, nem ela própria, acharam prudente
insistir na reclamação, não fosse o médico ficar ressentido e
depois pagar-se da impertinência fazendo-os esperar ainda
mais, tem-se visto. O velho do olho vendado foi magnanimo,
Deixem-no lá, coitado, aquele vai bem pior do que qualquer de
nós. O cego não o ouviu, já iam a entrar no gabinete do
médico, e a mulher dizia, Muito obrigada pela sua bondade,
senhor doutor, é que o meu marido, e tendo dito
interrompeu-se, em verdade ela não sabia o que realmente
sucedera, sabia apenas que o marido estava cego e lhes tinham
roubado o carro. O médico disse, Sentem-se, por favor, ele
próprio foi ajudar o paciente a acomodar-se, e depois,
tocando-lhe na mão, falou directamente para ele, Conte-me lá
então 0 que se passa consigo. O cego explicou que estando
dentro do carro, à espera de que o sinal vermelho mudasse,
tinha ficado subitamente sem ver, que umas pessoas acudiram a
ajudá-lo, que uma mulher de idade, pela voz devia ser. dissera
que aquilo se calhar eram nervos, e que depois um homem o
acompanhara a casa porque ele sozinho não podia valer-se, Vejo
tudo branco, senhor doutor. Não falou do roubo do automóvel.
O médico perguntou-lhe, Nunca lhe tinha acontecido antes,
quero dizer, 0 mesmo de agora, ou parecido, Nunca, senhor
doutor, eu nem sequer uso óculos, E diz-me que foi de repente,
Sim, senhor doutor, Como uma luz que se apaga, Mais como uma
luz que se acende, Nestes últimos dias tinha sentido alguma
diferença na vista, Não, senhor doutor, Há, ou houve, algum
caso de cegueira na sua familia, Nos parentes que conheci ou
de quem ouvi falar, nenhum, Sofre de diabetes, Não, senhor
doutor, De sífilis, Não, senhor doutor, De hipertensão
arterial ou intracraniana, Da intracraniana não sei, do mais
sei que não sofro, lá na empresa fazem-nos inspecções, Deu
alguma pancada violenta na cabeça, hoje ou
ontem, Não, senhor doutor, Quantos anos tem, Trinta e oito.
Bom, vamos lá então observar esses olhos. O cego abriu-os
muito, como para facilitar o exame, mas o médico tomou-o por
um braço e foi instalá-lo por trás de um aparelho que
., . . -, .
aiguem com ~magmaçao pocer~a ver como um novo modelo de
confessionário, em que os olhos tivessem substituído as
palavras, com o confessor a olhar directamente para dentro da
alma do pecador, Apoie aqui o queixo, recomendou, mantenha os
olhos abertos, não se mexa. A mulher aproximou-se do marido,
pôs-lhe a mão no ombro, disse, Verás como tudo se irá
resolver. O médico subiu e baixou o sistema binocular do seu
lado, fez girar parafusos de passo finfssimo, e principiou o
exame. Não encontrou nada na córnea, nada na esclerótica, nada
na íris, nada na retina, nada no cristalino, nada na mácula
lútea, nada no nervo óptico, nada em parte alguma. Afastou-se
do aparelho, esfregou os olhos, depois recomeçou o exame desde
o princípio, sem falar, e quando outra vez terminou tinha na
cara uma expressão perplexa, Não lhe encontro qualquer lesão,
os seus olhos estão perfeitos. A mulher juntou as mãos num
gesto de alegria e exclamou, Eu bem te tinha dito, eu bem te
tinha dito, tudo se ia resolver. Sem lhe dar atenção, o cego
perguntou, Já posso tirar o queixo, senhor doutor, Claro que
sim, desculpe, Se os meus olhos estão perfeitos, como diz,
então por que estou eu cego, Por enquanto não lhe sei dizer,
vamos ter de fazer exames mais minuciosos, análises,
ecografia, encefalograma, Acha que tem alguma coisa a ver com
o cérebro, É uma possibilidade, mas não creio, No entanto o
senhor doutor diz que não encontra nada de mau nos meus olhos,
Assim é, Não percebo, O que quero dizer é que se o senhor está
de facto cego, a sua cegueira, neste momento, é inexplicável,
Duvida que eu esteja cego, Que ideia, o problema está na
raridade do caso, pessoalmente, em toda a minha vida de
médico, nunca me apareceu nada assim, e atrevo-me mesmo a
dizer que em toda a história da oftalmologia, Acha que tenho
cura, Em princípio, porque não lhe encontro lesões de qualquer
tipo nem malformações congénitas,
a minha resposta deveria ser afirmativa, Mas pelos
vistos não o é, Só por cautela, só porque não quero dar-lhe
esperanças que depois venham a mostrar-se sem fundamento,
Compreendo, Pois é, E deverei seguir algum tratamento, tomar
algum remédio, Por enquanto não lhe receitarei nada, seria
estar a receitar às cegas, Aí está uma expressão apropriada,
observou o cego. O médico fez que não ouvira, afastou-se do
banco giratório em que se tinha sentado para a observação, e,
mesmo de pé, escreveu numa folha de re~c~-ta os exames e
análises que considerava necessários. Entregou o papel à
mulher, Aqui tem, minha senhora, volte cá com o seu marido
quando tiver os resultados, se entretanto houver alguma
modificação no estado dele, telefone-me, A consulta, senhor
doutor, Paga à empregada da recepção. Acompanhou-os à porta,
balbuciou uma frase de confiança, do género Vamos a ver, vamos
a ver, é preciso não desesperar, e quando se encontrou de novo
só entrou no pequeno quarto de banho anexo e ficou a olhar-se
no espelho durante um longo minuto, Que será isto, murmurou.
Depois regressou ao gabinete, chamou a empregada, Mande entrar
o seguinte.
Nessa noite o cego sonhou que estava cego.
Ao oferecer-se para ajudar o cego, o homem que depois roubou o
carro não tinha em mira, nesse momento preciso, qualquer
intenção malévola, mnito pelo contrário, o que ele fez não foi
mais que obedecer àqueles sentimentos de generosidade e
altru~smo que são, como toda a gente sabe, duas das melhores
características do género humano, podendo ser encontradas até
em criminosos bem mais empedernidos do que este, simples
ladrãozeco de automóveis sem esperança de avanço na carreira,
explorado pelos verdadeiros donos do negócio, que esses é que
se vão aproveitando das necessidades de quem é pobre. No fim
das contas, estas ou as outras, não é assim tão grande a
diferença entre ajudar um cego para depois o roubar e cuidar
de uma velhice caduca e tatebitate com o olho posto na
herança. Foi só quando já estava perto da casa do cego que a
ideia se lhe apresentou com toda a naturalidade, exactamente,
assim se pode dizer, como se tivesse decidido comprar um
bilhete de lotaria só por ter visto o cauteleiro, não teve
nenhum palpite, comprou a ver o que dali sala, conformado de
antemão com o que a volúvel fortuna lhe trouxesse, algo ou
coisa nenhuma, outros diriam que agiu segundo um reflexo
condicionado da sua personalidade. Os cépticos acerca da
natureza humana, que são muitos e teimosos, vêm sustentando
que se é certo que a ocasião nem sempre faz o ladrão, também é
certo que o ajuda muito. Quanto a nós, permitir-nos-emos
pensar que se o cego tivesse aceitado o segundo oferecimento
do afinal falso samaritano, naquele derradeiro instante em que
a bondade nada poderia ter prevalecido referimo-nos o
oferecimento
de lhe ficar a fazer companhia enquanto a mulher não chegasse
quem sabe se o efeito da responsabilidade moral resultante da
confiança assim outorgada não teria inibido a tentação
criminosa e feito vir ao de cima 0 que de luminoso e nobre
sempre será possível encontrar mesmo nas almas mais perdidas.
Plebeiamente concluindo' como não se cansa de ensinar-nos o
provérbio antigo, o cego, julgando que se benzia, partiu o
nariz.
A consciência moral, que tantos insensatos têm ofendido e
muitos mais renegado, é coisa que existe e existiu sempre, não
foi uma invenção dos filósofos do Quaternário, quando a alma
mal passava ainda de um projecto confuso. Com o andar dos
tempos, mais as actividades da convivência e as trocas
genéticas, acabámos por meter a consciência na cor do sangue e
no sal das lágrimas, e, como se tanto fosse pouco, fizemos dos
olhos uma espécie de espelhos virados para dentro, com o
resultado, muitas vezes, de mostrarem eles sem reserva o que
estávamos tratando de negar com a boca. Acresce a isto, que é
geral, a circunstancia particular de que, em espíritos
simples, o remorso causado por um mal feito se confunde
frequentemente com medos ancestrais de todo o tipo, donde
resulta que o castigo do prevaricador acaba por ser. sem pau
nem pedra, duas vezes o merecido. Não será possível, portanto,
neste caso, deslindar que parte dos medos e que parte da
consciência afligida começaram a apoquentar o ladrão assim que
pôs o carro em marcha. Sem dúvida nunca poderia ser
tranquilizador ir sentado no lugar de alguém que segurava com
as mãos este mesmo volante no momento em que cegou, que olhou
através deste pára-brisas e de repente ficou sem ver, não é
preciso ser-se dotado de muita imaginação para que tais
pensamentos façam acordar a imunda e rastejante besta do
pavor, aí está ela já a levantar a cabeça. Mas era também 0
remorso, expressão agravada duma consciência, como antes foi
dito, ou, se quisermos descrevê-lo em termos sugestivos, uma
consciência com dentes para morder, que estava a pôr-lhe
diante dos
olhos a imagem desamparada do cego quando fechava a porta, Não
é preciso, não é preciso, dissera o coitado, e daí para o
futuro não seria capaz de dar um passo sem ajuda.
O ladrão redobrou de atenção ao transito para impedir que
pensamentos tão assustadores lhe ocupassem por inteiro o
espírito, sabia bem que não podia permitir-se o mais pequeno
erro, a mais pequena distracção. A polícia andava por ali,
bastava que algum deles o mandasse parar, Faça favor, a carta
e o livrete, outra vez a cadeia, a dureza da vida. Usava de
todo o cuidado em obedecer aos semáforos, em caso algum
avançar com o vermelho, respeitar o amarelo, esperar com
paciência que saia o verde. A certa altura apercebeu-se de que
tinha começado a olhar as luzes de um modo que se estava a
tornar obsessivo. Passou então a regular a velocidade do carro
de maneira a ter sempre por diante um sinal verde, mesmo que
para o conseguir tivesse de aumentar a velocidade ou, pelo
contrário, reduzi-la ao ponto de irritar os condutores que
vinham de trás. Por fim, desorientado, tenso a mais não poder,
acabou por enfiar o carro por uma rua transversal secundária
onde sabia não haver semáforos, e arrumou-o quase sem olhar,
que lá bom condutor era ele. Sentia-se à beira de um ataque de
nervos, por estas exactas palavras o havia pensado, Estou aqui
estou a ter um ataque de nervos. Abafava-se dentro do
automóvel. Desceu os vidros dos dois lados, mas o ar de fora,
se se movia, não refrescou a atmosfera interior. Que faço,
perguntou. O barracão aonde deveria levar o carro ficava
longe, numa povoação fora da cidade, com o estado de espírito
em que se encontrava nunca conseguiria lá chegar, Apanha-me aí
um polícia, ou tenho um desastre, e ainda é pior, murmurou.
Pensou então que o melhor seria sair do automóvel por um
bocado, arejar as ideias, Talvez me limpe os aranhiços da
cabeça, lá porque o tipo ficou cego não quer dizer que a mim
me suceda o mesmo, isto não é uma gripe que se pega, dou uma
volta ao quarteirão e já me passa. Salu, nem valia a pena
fechar o carro, daí a nada estaria de volta, e afastou-se.
Ainda não tinha andado trinta passos quando cegou.
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No consultório, o último paciente a ser atendido foi o velho
de bom génio, aquele que dissera tão boas palavras sobre o
pobre diabo que cegara de repente. Ia só para combinar a data
da operação a uma catarata que lhe aparecera no único olho que
lhe restava, a venda preta tapava uma ausência. não tinha nada
que ver com o caso de agora, São mazelas que vêm com a idade,
dissera-lhe o médico tempos atrás, quando estiver madura
tiramo-la, depois nem vai reconhecer o mundo em que vivia.
Quando o velho da venda preta saiu e a enfermeira disse que
não havia mais pacientes na sala de espera, o médico pegou na
ficha do homem que aparecera cego, leu-a uma vez, duas vezes,
pensou durante alguns minutos e finalmente ligou o telefone
para um colega, com quem teve a seguinte conversação, Queres
saber, tive hoje um caso estranhíssimo, um homem que perdeu
totalmente a visão de um instante para outro, o exame não
mostrou qualquer lesão perceptível nem indícios de
malformações de nascença, diz ele que vê tudo branco, uma
espécie de brancura leitosa, espessa, que se lhe agarra aos
olhos, estou a tentar exprimir o melhor possível a descrição
que fez, sim, claro que é subjectivo, não, 0 homem é novo,
trinta e oito anos, tens notícia de algum caso semelhante,
leste, ouviste falar, bem me parecia, por agora não lhe vejo
solução, para ganhar tempo mandei-lhe fazer umas análises,
sim, podemos observá-lo juntos um destes dias, depois do
jantar vou passar os olhos pelos livros, rever bibliografia,
talvez encontre uma pista, sim, bem sei, a agnosia, a cegueira
psíquica, poderia ser. mas então tratar-se-ia do primeiro caso
com estas características, porque não há dúvida de que o homem
está mesmo cego, a agnosia, sabemo-lo~ é a incapacidade de
reconhecer o que se vê, pois, também pensei nisso, a
possibilidade de se tratar de uma amaurose, mas lembra-te do
que comecei por te dizer, esta cegueira é branca, precisamente
o contrário da amaurose, que é treva total, a não ser que
exista por aí uma amaurose branca, uma treva branca, por assim
dizer, sim, já sei, foi coisa que nunca se viu, de acordo,
amanhã telefono-lhe, digo-lhe que queremos
examh~á-lo os dois. Terminada a conversa, o médico recostou-se
na cadeira, deixou-se ficar assim uns minutos, depois
levantou-se, despiu a bata em movimentos cansados, lentos. Foi
à casa de banho para lavar as mãos, mas desta vez não
perguntou ao espelho, metafisicamente, Que será aquilo,
recuperara o espírito científico, o facto de a agnosia e a
amaurose se encontrarem identificadas e definidas com precisão
nos livros e na prática, não significava que não viessem a
surgir variantes, mutações, se a palavra é adequada, e esse
dia parecia ter chegado. Há mil razões para que o cérebro se
feche, só isto, e nada mais, como uma visita tardia que
encontrasse cerrados os seus próprios umbrais. O
oftalmologista tinha gostos literários e sabia citar a
propósito.
À noite, depois do jantar, disse à mulher, Apareceu-me no
consu ltório u m estranh o caso, poderia tratar- se de u ma
variante da cegueira psíquica ou da amaurose, mas não consta
que tal coisa se tivesse verificado alguma vez, Que doenc,as
são essas, a amaurose e a outra, perguntou a mulher. O médico
deu uma explicação acessível a um entendimento normal, que
satisfez a curiosidade dela, depois foi buscar à estante os
livros da especialidade, uns antigos, do tempo da faculdade,
outros recentes, alguns de publicação recentíssima, que ainda
mal tivera tempo de estudar. Procurou nos índices, a seguir,
metodicamente, pôs-se a ler tudo o que ia encontrando sobre a
agnosia e a amaurose, com a impressão incómoda de saber-se
intruso num domínio que não era o seu, o misterioso território
da neurocirurgia, acerca do qual não possuía mais do que umas
]uzes escassas. Noite dentro, afastou os livros que estivera a
consultar, esfregou os olhos fatigados e reclinou-se na
cadeira. Nesse momento a alternativa apresentava-se-lhe com
toda a clareza. Se o caso fosse de agnosia, o paciente estaria
vendo agora o que sempre tinha visto, isto é, não teria
ocorrido nele qualquer diminuição da acuidade visual,
simplesmente o cérebro ter-se-ia tornado incapaz de reconhecer
uma cadeira onde estivesse uma cadeira, quer dizer,
continuaria a reagir correctamente aos estímulos luminosos
encaminhados pelo nervo óptico, mas, para
usar uns termos comuns, ao alcance de gente pouco informada.
teria perdido a capacidade de saber que sabia e, mais ainda,
de dizê-lo. Quanto à amaurose, aí, nenhuma dúvida. Para que
efectivamente o caso fosse esse, o paciente teria de ver tudo
negro, ressalvando-se, já se sabe, o uso de tal verbo, ver,
quando de trevas absolutas se tratava. O cego afirmara
categoricamente que via, ressalve-se também o verbo, uma cor
branca uniforme, densa, como se se encontrasse mergulhado de
olhos abertos num mar de leite. Uma amaurose branca, além de
ser etimologicamente uma contradição, seria também uma
impossibilidade neurológica, uma vez que o cérebro, que não
poderia então perceber as imagens, as formas e as cores da
realidade, não poderia da mesma maneira, para dizê-lo assim,
cobrir de branco, de um branco contínuo, como u ma pi ntura
branca sem to nal idade s, as cores, as formas e as imagens
que a mesma realidade apresentasse a uma visão normal, por
muito problemático que sempre seja falar, com efectiva
propriedade, de uma visão normal. Com a consciência c larí ss
i ma de se enc ontrar metido num beco onde aparentemente não
havia saída, o médico abanou a cabeça com desalento e olhou em
redor. A mulher já se tinha retirado, lembrava-se vagamente de
que ela se aproximara um momento e lhe dera um beijo no
cabelo, Vou-me deitar, devia ter dito, a casa estava agora
silenciosa, em cima da mesa os livros espalhados, Que será
isto, pensou, e de súbito sentiu medo, como se ele próprio
fosse cegar no instante seguinte e já o soubesse. Susteve a
respiração e esperou. Nada sucedeu. Sucedeu um minuto depois,
quando juntava os livros para os arrumar na estante. Primeiro
percebeu que tinha deixado de ver as mãos, depois soube que
estava cego.
O mal da rapariga dos óculos escuros não era de gravidade,
tinha apenas uma conjuntivite das mais simples, que o tópico
ligeiramente receitado pelo médico iria resolver em poucos
dias, Já sabe, durante esse tempo só tira os óculos para
dormir, dissera-lhe. O gracejo levava muitos anos de uso, é
mesmo de supor que viesse passando de geração em geração de
oftalmologistas, mas o efeito repetia-se de cada
vez, o médico sorria ao dizê-lo, sorria o paciente ao ouvi-lo,
e neste caso valia a pena, porque a rapariga tinha
os dentes bonitos e sabia como mostrá-los. Por natural
misantropia ou demasiadas decepções na vida,
qualquer céptico comum, conhecedor dos pormenores da vida
desta mulher, insinuaria que a bonitez do
sorriso não passava de uma artimanha de ofício, afirmação
maldosa e gratuita, porque ele,
. . . . .
O sorriso, Já tinha sido assim nos tempos não muito distantes
em que a mulher fora menina, palavra em
desuso, quando o futuro era uma carta fechada e a curiosidade
de abri-la ainda estava por nascer.
Simplificando, pois, poder-se-ia incluir esta mulher na classe
das denominadas prostitutas, mas a
complexidade da trama das relações sociais, tanto diurnas como
nocturnas, tanto verticais como horizontais,
da época aqui descrita, aconselha a moderar qualquer tendência
para juízos peremptórios, definitivos, balda
de que, por exagerada suficiência nossa, talvez nunca
consigamos livrar-nos. Ainda que seja evidente o
muito que de nuvem há em Juno, não é licito, de todo, teimar
em confundir com uma deusa grega o que não
passa de uma vulgar massa de gotas de água pairando na
atmosfera. Sem dúvida, esta mulher vai para a cama
a troco de dinheiro, o que permitiria, provavelmente, sem mais
considerações, classificá-la como prostituta
de facto, mas, sendo certo que só vai quando quer e com quem
quer, não é de desdenhar a probabilidade de
que tal diferença de direito deva determinar cautelarmente a
sua exclusão do grémio, entendido como um
todo. Ela tem, como a gente normal, uma profissão, e, também
como a gente normal, aproveita as horas que
lhe ficam para dar algumas alegrias ao corpo e suficientes
satisfações às necessidades, as particulares e as
gerais. Se não se pretender reduzi-la a uma definição
primária, o que finalmente se deverá dizer dela, em
lato sentido, é que vive como lhe apetece e ainda por cima
tira daí todo o prazer que pode.
Fizera-se noite quando saiu do consultório. Não tirou os
óculos, a iluminação das ruas incomodava-a,
em particular a dos anúncios. Entrou numa farmácia a comprar o
medicamento que o médico tinha receitado. decidiu não se dar
por achada quando o empregado que a atendia falou
do injusto que é andarem certos olhos cobertos por vidros
escuros. Observação que, além de ser impertinente
em .si mesma, o ajudante de farmácia. imagine-se, contrariava
a sua convicção de que os óculos escuros
lhe conferiam um ar de capitoso mistério, capaz de provocar o
interesse dos homens que passam, e eventualmente
retribuí-lo, se não se desse hoje, a circunstancia de haver
alguém à sua espera, um encontro de que tinha razões
para esperar boas coisas, tanto no que se referia à satisfação
material como às outras satisfações. O homem com quem
ia estar era já seu conhecido, não se tinha importado quando
ela avisou que não poderia tirar os óculos, ordem, aliás,
que o médico ainda não dera, e até lhe achou graça, era uma
novidade. À saída da farmácia, a rapariga chamou um
táxi, deu o nome de um hotel. Recostada no assento, prelibava
já, se o termo é próprio, as distintas e múltiplas
sensações do gozo sensual, desde o primeiro e sábio roçar dos
lábios, desde a primeira carícia íntima, até às
sucessivas explosões de um orgasmo que iria deixá-la exausta e
feliz, como se estivesse a ser crucificada, salvo seja,
numa girandola ofuscante e vertiginosa. Razões portanto temos
para concluir que a rapariga dos óculos escuros, se
o parceiro soube cumprir cabalmente, em tempo e em técnica, a
sua obrigação, paga sempre por adiantado e em dobro
o que depois vem a cobrar. Em meio destes pensamentos, sem
dúvida porque tinha acabado de pagar uma consulta,
ela perguntou-se se não seria boa altura para subir, já a
partir de hoje, o que, com risonho eufemismo, costumava de-
signar por seu justo nível de compensação.
Mandou parar o táxi um quarteirão antes, misturou-se com as
pessoas que seguiam na mesma direcção, como que
deixando-se levar por elas, anónima e sem nenhuma culpa
notória. Entrou no hotel com ar natural, atravessou o vestí-
bulo para o bar. Chegara adiantada alguns minutos, portanto
devia esperar, a hora do encontro havia sido combinada
com precisão. Pediu um refresco, que tomou sossegadamente, sem
pôr os olhos em ninguém, não queria ser confundida com uma
caçadora de homens vulgar. Um pouco mais
tarde, como uma turista que sobe ao quarto a descansar depois
de ter passado a tarde nos museus, dirigiu-se
ao ascensor. A virtude, quem o ignorará ainda~ sempre encontra
escolhos no duríssimo caminho da
perfeição, tnas o pecado e o vício são tão favorecidos da
fortuna que foi ela chegar e abrirem-se-lhe as portas
do elevador. Saíram dois hóspedes, um casal idoso, ela passou
para dentro, premiu o botão do terceiro andar,
trezentos e doze era o número que a esperava, é aqui, bateu
discretamente à porta, dez minutos depois estava
nua, aos quinze gemia, aos dezoito sussurrava palavras de amor
que já não tinha necessidade de fingir, aos
vinte começava a perder a cabeça, aos vinte e um sentiu que o
corpo se lhe despedaçava de prazer, aos vinte
e dois gritou, Agora, agora, e quando recuperou a consciência
disse, exausta e feliz, Ainda vejo tudo branco.
Ao ladrão do automóvel levou-o um polícia a casa. Não podia o
circunspecto e compadecido agente de autoridade imaginar que
conduzia um empedernido delinquente pelo braço, não para o
impedir de escapar-se, como em outra ocasião teria sido, mas
simplesmente para o que o pobre homem não tropeçasse e caísse.
Em compensação, já nos é muito fácil imaginar o susto que
levou a mulher do ladrão quando, abrindo a porta, se encontrou
pela frente com um polícia de uniforme que trazia filado,
assim lhe pareceu, um decaído prisioneiro, a quem, a avaliar
pela triste cara que trazia, devia ter sucedido algo pior que
ser preso. Por um instante, primeiro pensou a mulher que o seu
homem havia sido apanhado em flagrante delito e que o polícia
estava ali para passar busca à casa, ideia esta, por outro
lado, e por muito paradoxal que pareça, bastante
tranquilizadora, considerando que o marido só roubava
automóveis, objectos que, pelo seu tamanho, não podem ser
escondidos debaixo da cama. Não durou muito a dúvida, o
polícia disse, Este senhor está cego, tome conta dele, e a
mulher, que deveria ter ficado aliviada porque o agente,
afinal, vinha apenas de acompanhante, percebeu a dimensão da
fatalidade que lhe entrava em casa quando um marido desfeito
em lágnmas lhe caiu nos braços dizendo o que já sabemos.
A rapariga dos óculos escuros também foi levada a casa de seus
pais por um polícia, mas o picante das circunstancias em que a
cegueira, no seu caso, se declarara, uma mulher nua aos
gritos num hotel, alvorotando os hóspedes, enquanto o homem
que estava com ela tentava escapulir-se
enfiando atabalhoadamente as calças . moderava de certa
maneira, o dramatisino óbvio da situação. A cega. corrida de
vergonha. sentimento em tudo compatível, por muito que rosnem
os prudentes fingidos e os virtuosos falsos, com os
mercenários exercícios amatórios a que se dedicava. após os
gritos lancinantes que começou a soltar ao compreender que
Date: 2016-01-05; view: 655
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