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Agradecimentos especiais a Klaus. 9 page

Ralf olhou-a, Maria sentiu que ele a despia, e gostou de ser desejada daquela maneira

- sem contato, como em um restaurante ou na fila do cinema.

- Estamos em uma estação - continuou Maria. - Estou esperando o trem junto com você, você não me conhece. Mas os meus olhos cruzam com os seus, por acaso, e não se desviam. Você não sabe o que estou tentando dizer, porque, embora seja um homem inteligente, capaz de ver a "luz" das pessoas, não é sensível o bastante para ver o que esta luz está iluminando.

Tinha aprendido o "teatro". Quis esquecer rápido o rosto do executivo inglês, mas ele estava ali, guiando sua imaginação.

- Meus olhos estão fixos nos seus, e posso estar perguntando a mim mesma: "Será que o conheço de algum lugar?" Ou posso estar distraída. Ou posso estar com medo de ser antipática, talvez você me conheça, vou dar-lhe o benefício da dúvida por alguns segundos, até concluir que é um fato, ou um malentendido.

"Mas também posso estar querendo a coisa mais simples do mundo: encontrar um homem. Posso estar tentando fugir de um amor que sofri. Posso estar procurando vingar-me de uma traição que acabou de acontecer, e resolvi ir até a estação de trem em busca de um desconhecido. Posso desejar ser sua prostituta só por uma noite, só para fazer algo diferente em minha vida aborrecida. Posso, inclusive, ser uma prostituta de verdade, que está ali para conseguir trabalho."

Um rápido silêncio; Maria havia se distraído de repente. Voltara para o hotel, a humilhação - "amarelo", "vermelho", dor e muito prazer. Aquilo havia mexido com sua alma, de uma maneira que não estava gostando.

Ralf notou, e procurou puxá-la de novo para a estação de trem:

- Neste encontro, você também me deseja?

- Não sei. Não nos falamos, você não sabe.

Outros segundos de distração. De qualquer maneira, a idéia do "teatro" ajudava muito; fazia surgir o verdadeiro personagem, afastava as muitas pessoas falsas que habitam em nós mesmos.

- Mas o fato é que eu não desvio meus olhos, e você não sabe o que fazer. Deve aproximar-se? Será rejeitado? Chamarei um guarda? Ou o convidarei para tomar café?

- Estou voltando de Munique - disse Ralf Hart, e seu tom de voz era diferente, como se estivessem realmente se encontrando pela primeira vez. - Estou pensando em uma coleção de quadros sobre as personalidades do sexo. As muitas máscaras que as pessoas usam para jamais viverem o verdadeiro encontro.

Ele conhecia o "teatro". Milan dissera que era também um cliente especial. O alarme tocou, mas ela precisava de tempo para pensar.



- O diretor do museu me disse: "Em que você pretende basear o seu trabalho?" Eu respondi: "Em mulheres que se sentem livres para fazer amor por dinheiro." Ele comentou:

"Não dá, chamamos estas mulheres de prostitutas." Eu respondi: "Bem, são prostitutas, vou estudar a história delas e farei algo mais intelectual, mais a gosto das famílias que irão freqüentar o seu museu. Tudo é uma questão de cultura, sabia? De apresentar de uma maneira agradável aquilo que custa a ser digerido." O diretor insistiu: "Mas o sexo não é mais tabu. É uma coisa tão explorada, que fica difícil fazer um trabalho com este tema." Eu respondi: "E você sabe de onde vem o desejo sexual?" "Do instinto", disse o diretor. "Sim, do instinto", afirmei, "mas isso todo mundo sabe. Como fazer uma bela exposição, se estamos apenas falando de ciência? Eu quero falar de como o homem explica essa atração.

Como um filósofo, por exemplo, contaria isso." O diretor pediu que eu desse um exemplo.

Eu disse que, quando tomasse o trem de volta para casa e alguma mulher me olhasse, eu iria falar com ela; diria que, por ser uma estranha, poderíamos ter a liberdade de fazer tudo que tínhamos sonhado, viver todas as nossas fantasias, e depois ir para nossas casas, nossas mulheres e nossos maridos, sem que jamais nos cruzássemos novamente. E então, nesta estação de trem, eu a vejo."

- Sua história é tão interessante, que está matando o desejo.

Ralf Hart riu, e concordou. O vinho tinha acabado, ele foi até a cozinha pegar mais uma garrafa, e ela ficou olhando o fogo, já sabendo qual seria o próximo passo, mas ao mesmo tempo saboreando o ambiente acolhedor, esquecendo o executivo inglês, voltando a entregar-se.

Ralf serviu os dois copos.

- Apenas como curiosidade, de que maneira você acabaria esta história com o diretor?

- Citaria Platão, já que estaria diante de um intelectual. Segundo ele, no início da criação, os homens e mulheres não eram como são hoje; havia apenas um ser, que era baixo, com um corpo e um pescoço, mas sua cabeça tinha duas faces, cada uma olhando para uma direção. Era como se duas criaturas estivessem grudadas pelas costas, com dois sexos opostos, quatro pernas, quatro braços.

"Os deuses gregos, porém, eram ciumentos, e viram que uma criatura que tinha quatro braços trabalhava mais, duas faces opostas esta vam sempre vigilantes e não podia ser atacada por traição, quatro pernas não exigiam tanto esforço para ficar de pé ou andar por longos períodos. E, o que era mais perigoso: tal criatura tinha dois sexos diferentes, não precisava de ninguém mais para continuar se reproduzindo na terra.

"Então disse Zeus, o supremo senhor do Olimpo: `Tenho um plano para fazer com que estes mortais percam sua força.'

"E, com um raio, cortou a criatura em dois, criando 0 homem e a mulher. Isso aumentou muito a população do mundo, e ao mesmo tempo desorientou e enfraqueceu os que nele habitavam - porque agora tinham que buscar de novo sua parte perdida, abraçá-la de novo, e nesse abraço recuperar a força antiga, a capacidade de evitar a traição, a resistência para andar longos períodos e agüentar o trabalho cansativo. O abraço em que os dois corpos se confundem de novo em um, nós o chamamos de sexo."

- Essa história é verdade?

- Segundo Platão, o filósofo grego.

Maria olhava-o fascinada, e a experiência da noite anterior tinha desaparecido por completo. Ela via o homem à sua frente cheio da mesma "luz" que ele enxergara nela, contando aquela estranha história com entusiasmo, os olhos brilhando não mais de desejo, mas de alegria.

- Posso lhe pedir um favor?

Ralf respondeu que podia pedir qualquer coisa.

- Pode descobrir por que, depois que os deuses separaram a criatura com quatro pernas, algumas delas resolveram que o abraço podia ser apenas uma coisa, um negócio como outro qualquer, que, em vez de acrescentar, retira a energia das pessoas?

- Você está falando de prostituição?

- Isso. Pode descobrir quando o sexo deixou de ser sagrado?

- Farei isso se você quiser - respondeu Ralf. - Mas nunca pensei nisso, e creio que ninguém mais pensou; talvez não haja material a esse respeito.

Maria não agüentou a pressão:

- já lhe ocorreu pensar que as mulheres, principalmente as prostitutas, são capazes de amar?

- Sim, me ocorreu. Me ocorreu no primeiro dia, quando estávamos na mesa do café, quando vi sua luz. Então, quando pensei em convidá-la para um café, escolhi acreditarem tudo, inclusive na possibilidade de que você me devolvesse ao mundo, de onde parti faz muito tempo.

Agora não havia mais retorno. Maria, a mestra, precisava vir imediatamente em seu socorro, ou ela iria beijá- lo, abraçá-lo, pedir que não a deixasse.

- Vamos voltar para a estação de trem - disse. - Melhor dizendo, vamos voltar para esta sala, para o dia em que viemos aqui pela primeira vez, e você reconheceu que eu existia, e me deu um presente. Foi a primeira tentativa de entrar na minha alma, e você não sabia se era bem- vindo. Mas, como diz a sua história, os seres humanos foram divididos e agora buscam de novo este abraço que os una. Esse é o nosso instinto. Mas também a nossa razão para agüentar todas as coisas difíceis que acontecem durante esta busca.

 

"Eu quero que você me olhe, e quero, ao mesmo tempo, que evite fazer com que eu note. O primeiro desejo é importante porque ele é escondido, proibido, não consentido.

Você não sabe se está diante da sua metade perdida, ela tampouco sabe, mas algo os atrai -

e é preciso acreditar que seja verdade."

De onde estou tirando tudo isso? Estou tirando tudo isso do fundo do meu coração, porque gostaria que sempre tivesse sido assim. Estou tirando estes sonhos do meu próprio sonho de mulher.

Ela abaixou um pouco a alça do seu vestido, de modo que uma parte, apenas uma ínfima parte do bico do seu seio ficasse descoberto.

- O desejo não é o que você vê, mas aquilo que você imagina.

Ralf Hart olhava uma mulher de cabelos negros, e roupa igual aos cabelos, sentada no chão de sua sala de visitas, cheia de desejos absurdos, como ter uma lareira acesa em pleno verão. Sim, queria imaginar o que aquela roupa escondia, podia ver o tamanho de seus seios, sabia que o sutiã que ela usava era desnecessário, embora talvez fosse uma obrigação do ofício. Seus seios não eram grandes, não eram pequenos, eram jovens. Seu olhar não demonstrava nada; o que ela estava fazendo ali? Por que ele estava alimentando esta relação perigosa, absurda, se não tinha nenhum problema em arranjar uma mulher? Era rico, jovem, famoso, de boa aparência. Adorava seu trabalho, tinha amado as mulheres com que se casara, tinha sido amado. Enfim, era uma pessoa que, por todos os padrões, deveria gritar bem alto: "Eu sou feliz."

Mas não era. Enquanto a maioria dos seres humanos se matava por um pedaço de pão, um teto onde morar, um emprego que lhe permitisse viver com dignidade, Ralf Hart tinha tudo isso, o que o tornava mais miserável. Se fizesse um balanço recente de sua vida, talvez tivesse vivido dois, três dias em que tenha acordado, olhado o sol - ou a chuva - se sentido alegre por ser de manhã, apenas alegre, sem desejar nada, sem planejar nada, sem pedir nada em troca. Afora esses poucos dias, o resto de sua existência tinha sido gasto em sonhos, frustrações e realizações, desejo de superar a si mesmo, viagens além dos seus limites; não sabia exatamente a quem, ou o quê, o certo é que passara a sua vida tentando provar algo.

Olhava a bela mulher à sua frente, discretamente vestida de negro, alguém que encontrara por acaso, embora já a tivesse visto antes em uma boate, e reparado que não combinava com o lugar. Ela pedia que a desejasse, e ele a desejava muito, muito mais do que podia imaginar - mas não eram os seus seios, ou o seu corpo; era a sua companhia.

Queria abraçá- la, ficarem silêncio olhando o fogo, bebendo vinho, fumando um ou outro cigarro, isso era o suficiente. A vida era feita de coisas simples, estava cansado de todos estes anos buscando algo que não sabia

o que era.

Entretanto, se fizesse isso, se a tocasse, tudo estaria perdido. Porque, apesar de sua

"luz", não estava certo se ela entendia como era bom estar ao seu lado. Estava pagando?

Sim, e continuaria pagando o tempo que fosse necessário, até poder sentarse com ela à beira do lago, falar de amor - e escutar a mesma coisa de volta. Melhor não arriscar, não precipitar as coisas, não dizer nada.

Ralf Hart parou de se torturar e voltou a concentrar-se no jogo que acabavam de criar juntos. A mulher à sua frente estava certa: não bastava o vinho, o fogo, o cigarro, a companhia; era preciso outro tipo de embriaguez, outro tipo de chama.

A mulher estava com um vestido de alças, tinha deixado um seio à mostra, ele podia ver sua carne, mais para morena que branca. Desejou-a. Desejou-a muito.

Maria notou a mudança nos olhos de Ralf. Saber-se desejada a excitava mais do que qualquer outra coisa. Nada tinha a ver com a receita convencional - quero fazer amor com você, quero casar, quero que você tenha um orgasmo, quero ter um filho, quero compromissos. Não, o desejo era uma sensação livre, solta no espaço, vibrando, enchendo a vida com a vontade de ter algo - e isso bastava, essa vontade empurrava tudo para a frente, desmoronava as montanhas, deixava úmido seu sexo.

O desejo era a fonte de tudo - de sair de sua terra, de descobrir um novo mundo, aprender francês, superar seus preconceitos, sonhar com uma fazenda, amar sem pedir nada em troca, sentir-se mulher apenas por causa do olhar de um homem. Com uma lentidão calculada, abaixou a outra alça, e o vestido escorregou por seu corpo. Em seguida, desabotoou o sutiã. Ali ficou, com a parte superior do corpo completamente despida, imaginando se ele iria saltar sobre ela, tocá- la, fazer juras de amor - ou se era sensível o suficiente para sentir, no próprio desejo, o mesmo prazer do sexo.

As coisas em volta dos dois começaram a mudar, os ruídos já não existiam mais, a lareira, os quadros, os livros foram desaparecendo, substituídos por uma espécie de transe, em que apenas 0 obscuro objeto do desejo existe, e nada mais tem importância.

O homem não se mexeu. No início sentiu uma certa timidez em seus olhos, mas não durou muito. Ele a olhava, e no mundo de sua imaginação ele a acariciava com sua língua, faziam amor, suavam, abraçavam-se, misturavam ternura e violência, gritavam e gemiam juntos.

No mundo real, porém, nada diziam, nenhum dos dois se movia, e isso a deixava mais excitada ainda, porque também ela estava livre para pensar o que quisesse. Pedia que a tocasse com suavidade, abria as pernas, masturbava-se diante dele, dizia frases românticas e vulgares como se fossem a mesma coisa, tinha vários orgasmos, acordava os vizinhos, acordava o mundo inteiro com seus gritos. Ali estava seu homem, que lhe dava prazer e alegria, com quem podia ser quem era, falar dos seus problemas sexuais, contar o quanto gostaria de continuar junto com ele pelo resto da noite, da semana, da vida.

O suor começou a pingar da testa de ambos. Era a lareira, um dizia mentalmente para o outro. Mas tanto o homem como a mulher naquela sala tinham chegado ao seu limite, usado toda a imaginação, vivido juntos uma eternidade de momentos bons. Precisavam parar. Mais um passo e aquela magia seria desfeita pela realidade.

Com muita lentidão - porque o final é sempre mais difícil que o princípio, ela recolocou o sutiã e escondeu os seios. O universo voltou ao seu lugar, as coisas em volta tornaram a surgir, ela levantou o vestido que tombara até sua cintura, sorriu, e com suavidade tocou-lhe o rosto. Ele pegou a sua mão e apertou-a contra a face, sem saber até onde devia mantê- la ali, ou com que intensidade devia agarrá- la.

Ela sentiu vontade de dizer que o amava. Mas isso estragaria tudo, podia assustá-lo ou

- o que era pior - podia fazer com que respondesse que também a amava. Maria não queria isso: a liberdade do seu amor era não ter nada o que pedir ou esperar.

- Quem é capaz de sentir sabe que é possível ter prazer antes mesmo de tocar outra pessoa. As palavras, os olhares, tudo isso contém o segredo da dança. Mas o trem chegou, cada um vai para o seu lado. Espero poder acompanhá-lo nesta viagem até... até onde?

- De volta a Genève - respondeu Ralf.

- Quem observa, e descobre a pessoa com quem sempre sonhou, sabe que a energia sexual acontece antes do próprio sexo. O maior prazer não é o sexo, é a paixão com que ele é praticado. Quando esta paixão é intensa, o sexo vem para consumar a dança, mas ele nunca é o ponto principal.

- Você está falando de amor como uma professora.

Maria resolveu falar, porque esta era a sua defesa, sua maneira de dizer tudo sem comprometer-se com nada:

- Quem está apaixonado está fazendo amor o tempo todo, mesmo quando não está fazendo. Quando os corpos se encontram, é apenas o transbordar da taça. Podem ficar juntos por horas, até dias. Podem começar a dança em um dia e acabar em outro, ou até mesmo não acabar, de tanto prazer. Nada a ver com onze minutos.

- O quê?

- Eu te amo.

- Eu também te amo.

- Perdão. Não sei o que estou dizendo.

- Nem eu.

Levantou-se, deu-lhe um beijo e saiu. Ela mesma podia abrir a porta, já que a superstição brasileira dizia que o dono da casa só precisava fazê- lo na primeira vez que fosse embora.

 

Do diário de Maria, na manhã seguinte:

Ontem à noite, quando Ralf Hart me olhou, abriu uma porta, como se fosse um ladrão; mas, ao ir embora, não levou nada de mim; ao contrário, deixou o cheiro de rosas -

não era um ladrão, mas um noivo que me visitava.

Cada ser humano vive seu próprio desejo; faz parte do seu tesouro, e, embora seja uma emoção que pode afastar alguém, geralmente traz quem é importante para perto. É

uma emoção que minha alma escolheu, e tão intensa que pode contagiar tudo e todos à minha volta.

Cada dia escolho a verdade com a qual pretendo viver. Procuro ser prática, eficiente, profissional. Mas gostaria de poder escolher, sempre, o desejo como meu companheiro.

Não por obrigação, nem para atenuar a solidão de minha vida, mas porque é bom. Sim, é muito bom.

Copacabana tinha, em média, trinta e oito mulheres que freqüentavam a casa com regularidade, embora apenas uma, a filipina Nyah, pudesse ser considerada por Maria como uma relação próxima à amizade. A média de permanência ali era de no mínimo seis meses, e no máximo três anos - porque logo recebiam um convite para casar, ser amante fixa ou, se já não conseguiam mais atrair a atenção dos fregueses, Milan pedia delicadamente que procurassem um outro lugar de trabalho.

Por isso, era importante respeitar a clientela de cada uma, e jamais procurar seduzir os homens que ali entravam e iam direto para determinada moça. Além de ser desonesto, podia ser muito perigoso; na semana anterior, uma colombiana tirara delicadamente uma lâmina de barbear do bolso, colocara em cima do copo de uma iugoslava e dissera com a voz mais tranqüila do mundo que a iria desfigurar, se insistisse em aceitar de novo o convite de um certo diretor de banco que costumava ir ali com regularidade. A iugoslava alegara que o homem era livre, e se a tinha escolhido, não podia recusar.

Naquela noite, o homem entrou, cumprimentou a colombiana e foi para a mesa onde estava a outra. Tomaram o drink, dançaram e - Maria achou que era provocação demais - a iugoslava piscou para a outra, como se estivesse dizendo: "Está vendo? Ele me escolheu!"

Mas aquela piscadela de olho continha muitas outras coisas não ditas: ele me escolheu porque sou mais bela, porque estive com ele na semana passada e ele gostou, porque sou jovem. A colombiana não disse nada. Quando a sérvia voltou, duas horas depois, ela sentou-se ao seu lado, tirou a lâmina de barbear do bolso e cortou o rosto da outra perto da orelha: nada profundo, nada perigoso, apenas o suficiente para deixar uma pequena cicatriz que a lembrasse para sempre daquela noite. As duas se atracaram, o sangue espirrou para todo lado, os fregueses saíram assustados.

Quando a polícia chegou querendo saber o que se passava, a iugoslava disse que havia cortado o seu rosto em um copo que caíra de uma estante (não existiam estantes no Copacabana). Essa era a lei do silêncio, ou a "omertà", como gostavam de chamar as prostitutas italianas: tudo que tivesse que ser resolvido na Rue de Berne, do amor à morte, seria resolvido - mas sem a interferência da lei. Ali, eles faziam a lei.

A polícia sabia da "omertà", viu que a mulher estava mentindo, mas não insistiu no assunto - ia custar muito dinheiro ao contribuinte suíço se resolvesse prender, processar e alimentar uma prostituta durante o tempo em que estivesse na prisão. Milan agradeceu aos policiais pela pronta interferência, disse que era um mal-entendido, ou alguma intriga de um concorrente.

Assim que eles saíram, pediu que as duas nunca mais voltassem ao seu bar. Afinal de contas, o Copacabana era um lugar familiar (uma afirmativa que Maria custava a entender) e tinha uma reputação a zelar (o que a deixava mais intrigada ainda). Ali não havia brigas, porque a primeira lei era respeitar o cliente alheio.

A segunda lei era a total discrição, "semelhante à de um banco suíço", dizia ele.

Principalmente porque ali se podia confiar nos clientes, que eram selecionados como um banco seleciona os seus - baseado na conta corrente, mas também na folha corrida, ou seja, nos bons antecedentes.

Às vezes havia algum equívoco, alguns raros casos de nãopagamento, de agressão ou de ameaças às moças, mas nos muitos anos em que criara e desenvolvera com esforço a fama de sua boate, Milan já sabia identificar quem devia ou não freqüentar a casa.

Nenhuma das mulheres sabia exatamente qual era o seu critério, porém mais de uma vez já tinham visto alguém bem- vestido ser informado de que a boate estava cheia na quela noite (embora estivesse vazia) e nas noites seguintes (ou seja: por favor, não volte). Também tinham visto pessoas de roupa esporte e barba por fazer serem entusiasticamente convidadas por Milan para um copo de champanha. O dono do Copacabana não julgava pelas aparências e, no final das contas, sempre tinha razão.

Em uma boa relação comercial, todas as partes precisam estar satisfeitas. A grande maioria dos clientes era casada, ou tinha uma posição importante em alguma empresa.

Também algumas daquelas mulheres que trabalhavam ali eram casadas, tinham filhos, e freqüentavam as reuniões de pais nas escolas, sabendo que não corriam nenhum risco: se um dos pais aparecesse no Copacabana, também estaria comprometido, e não poderia dizer nada: assim funcionava a "omertà".

Havia camaradagem, mas não havia amizade. Ninguém falava muito da própria vida.

Nas poucas conversas que tivera, Maria não descobrira amargura, ou culpa, ou tristeza entre suas companheiras: apenas uma espécie de resignação. E também um estranho olhar de desafio, como se estivessem orgulhosas de si mesmas, enfrentando o mundo, independentes e confiantes. Depois de uma semana, qualquer moça recém-chegada já era considerada

"profissional", e recebia instruções para sempre ajudar a manter os casamentos (uma prostituta não pode ser uma ameaça à estabilidade de um lar), jamais aceitar convites para encontros fora do horário de trabalho, escutar confissões sem dar muita opinião, gemer na hora do orgasmo (Maria descobrira que todas faziam isso, e que no início não lhe tinham contado porque era um dos truques da profissão), cumprimentar a polícia na rua, manter atualizada a carteira de trabalho e os exames de saúde e, finalmente, não se indagar muito sobre os aspectos morais ou legais do que faziam; eram o que eram, e ponto final.

Antes que o movimento começasse, Maria sempre podia ser vista com um livro, e logo passou a ser conhecida como a "intelectual" do grupo. No início queriam saber se eram histórias de amor, mas ao ver que se tratava de assuntos áridos e desinteressantes como economia, psicologia e - recentemente - administração de fazendas, logo a deixavam sozinha para que continuasse sossegada sua pesquisa e suas anotações.

Por ter muitos clientes fixos, e por ir ao Copacabana todos os dias, mesmo quando o movimento era pequeno, Maria ganhou a confiança de Milan e a inveja das companheiras; comentavam que a brasileira era ambiciosa, arrogante, e só pensava em ganhar dinheiro.

Esta última parte não deixava de ser verdade, embora ela tivesse vontade de perguntar se todas as outras não estavam ali pelo mesmo motivo.

De qualquer maneira, comentários não matam - fazem parte da vida de qualquer pessoa bem-sucedida. Era melhor ignorá-los, concentrando a atenção em seus dois únicos objetivos: voltar para o Brasil na data marcada e comprar uma fazenda.

Ralf Hart agora estava em seu pensamento de manhã à noite, e pela primeira vez era capaz de ser feliz com um amor ausente - embora um pouco arrependida de ter confessado isso, arriscando-se a perder tudo. Mas o que tinha a perder, se não estava pedindo nada em troca? Lembrou-se de como o seu coração batera mais rápido quando Milan mencionara que ele era ou já tinha sido - um cliente especial. O que significava aquilo? Sentiu-se traída, ficou com ciúmes.

Claro que o ciúme é normal, embora a vida já lhe tivesse ensinado que era inútil pensar que alguém pode possuir outra pessoa - quem acredita que isso é possível está querendo enganar a si mesmo. Apesar disso, não se pode reprimir a idéia do ciúme, ou ter grandes idéias intelectuais a respeito, ou, ainda, achar que é uma demonstração de fragilidade.

O amor mais forte é aquele que pode demonstrar sua fragilidade. De qualquer maneira, se meu amor for verdadeiro (e não apenas uma maneira de me distrair, me enganar, passar o tempo que não passa nunca nesta cidade), a liberdade irá vencer o ciúme, e a dor que ele provoca - já que também a dor é parte de um processo natural. "Quem pratica esporte sabe disso: quando queremos atingir nossos objetivos, precisamos estar prontos para uma dose diária de dor ou mal-estar. A princípio, é incômodo e desmotivante, mas com o decorrer do tempo entendemos que faz parte do processo de sentir-se bem, e chega um momento em que, sem a dor, temos a sensação de que o exercício não está tendo o efeito desejado.

O perigoso é focalizar esta dor, dar- lhe um nome de pessoa, mantê-la sempre presente no pensamento; e disso, graças a Deus, Maria já conseguira se livrar.

Mesmo assim, às vezes descobria-se pensando em onde estaria ele, por que não a procurava, se a havia achado estúpida com aquela história de estação de trem e desejo reprimido, se fugira para sempre porque ela confessara seu amor. Para evitar que sentimentos tão belos se transformassem em sofrimento, ela desenvolveu um método: quando algo de positivo ligado a Ralf Hart viesse à sua mente - e isso podia ser a lareira e o vinho, uma idéia que gostaria de discutir com ele, ou simplesmente a ansiedade gostosa de saber quando voltaria -, Maria parava o que estava fazendo, sorria para o céu e agradecia por estar viva e não esperar nada do homem que amava.


Date: 2015-12-17; view: 643


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