Home Random Page


CATEGORIES:

BiologyChemistryConstructionCultureEcologyEconomyElectronicsFinanceGeographyHistoryInformaticsLawMathematicsMechanicsMedicineOtherPedagogyPhilosophyPhysicsPolicyPsychologySociologySportTourism






Agradecimentos especiais a Klaus. 8 page

Ela riu. Ele ofereceu-se para levá-la em casa, mas Maria

recusou.

- Irei vê-Ia amanhã, no Copacabana.

- Não faça isso. Espere uma semana. Aprendi que esperar é a parte mais difícil, e quero também me acostumar com isso; saber que você está comigo, mesmo que não esteja ao meu lado.

Andou de novo pelo frio e pela escuridão da noite, como já tinha feito tantas vezes em Genève; normalmente estas caminhadas estavam associadas a tristeza, solidão, vontade de voltar para o Brasil, saudades da língua que não falava havia muito tempo, cálculos financeiros, horários.

Hoje, porém, caminhava para encontrar a si mesma, encontrar aquela mulhe r que, durante quarenta minutos esteve diante do fogo com um homem, e era cheia de luz, de sabedoria, de experiência, de encanto. Vira o rosto desta mulher fazia algum tempo, quando passeava pelo lago pensando se devia ou não se dedicar a uma vida que não era a sua -

naquela tarde, sorrira de um jeito muito triste. Vira seu rosto pela segunda vez em uma tela dobrada, e agora sentia de novo a sua presença. Só apanhou um táxi depois de muito tempo, ao ver que aquela presença mágica fora embora e a abandonara como sempre.

Melhor então não pensar no assunto para não estragá-lo, para não deixar que a ansiedade substituísse tudo de bom que acabara de viver. Se aquela outra Maria existia mesmo, ela voltaria no momento certo.

 

Trecho do diário de Maria escrito na noite em que ganhou o vagão de trem: O desejo profundo, o desejo mais real é aquele de aproximar-se de alguém. A partir daí, começam a ocorrer as reações, o homem e a mulher entram em Jogo, mas o que acontece antes - a atração que os juntou - é impossível de explicar. É o desejo intocado, em seu estado puro.

Quando o desejo ainda está neste estado puro, homem e mulher se apaixonam pela vida, vivem cada momento com reverência, e conscientemente, sempre esperando o momento certo de celebrar a próxima bênção.

Pessoas assim não têm pressa, não precipitam os acontecimentos com ações inconscientes. Elas sabem que o inevitável se manifestará, que o verdadeiro sempre encontra uma maneira de mostrar-se. Quando chega o momento, elas não hesitam, não perdem uma oportunidade, não deixam passar nenhum momento mágico porque respeitam a importância de cada segundo.

 

Nos dias que se seguiram, Maria descobriu-se de novo presa na armadilha que tanto evitara - mas não estava triste nem preocupada com isso. Pelo contrário: já que não tinha mais nada a perder, estava livre.

Sabia que, por mais romântica que fosse a situação, um dia Ralf Hart iria compreender que ela não passava de uma prostituta, enquanto ele era um respeitado artista.



Que ela morava em um país distante, sempre em crises, enquanto ele vivia no paraíso, com a vida organizada e protegida desde o nascimento. Ele fora educado freqüentando os melhores colégios e museus do mundo, enquanto ela mal terminara o curso secundário.

Enfim, sonhos como esses não duram muito, e Maria já vivera o bastante para entender que a realidade não combinava com seus sonhos. Essa era agora sua grande alegria: dizer à realidade que não precisava dela, não dependia das coisas que aconteciam para ser feliz.

"Como sou romântica, meu Deus."

Durante a semana tentou descobrir algo que pudesse deixar Ralf Hart feliz; ele lhe havia devolvido uma dignidade e uma "luz" que ela julgava perdidas para sempre. Mas a única forma de retribuí-lo era através do que ele julgava ser a especialidade de Maria: sexo.

Como as coisas não variavam muito na rotina do Copacabana, ela resolveu procurar outras fontes.

Foi assistir a alguns filmes pornográficos, e de novo não encontrou nada interessante -

exceto, talvez, por alguma variação quanto ao número de parceiros. Como os filmes não ajudavam muito, pela primeira vez desde que chegara em Genève decidiu comprar livros, embora ainda achasse que era muito mais prático não precisar ocupar o espaço de sua casa com algo que, uma vez lido, não tinha mais uso. Foi até uma livraria que vira enquanto andava com Ralf pelo Caminho de Santiago, e procurou saber se tinham alguma coisa sobre o tema.

- Muita, muita coisa - respondeu a moça encarregada de vendas. - Na verdade, as pessoas parecem se preocupar apenas com isso. Além de uma seção especial, também em todos os romances que você está vendo a sua volta existe pelo menos uma cena de sexo.

Mesmo que esteja escondido em lindas histórias de amor, ou em tratados sérios sobre o comportamento do ser humano, o fato é que as pessoas só pe nsam nisso.

Maria, com toda a sua experiência, sabia que a moça estava enganada: as pessoas queriam pensar assim, porque achavam que o mundo inteiro só se preocupava com este tema. Faziam regimes, usavam perucas, ficavam horas no cabeleireiro ou em academias de ginástica, vestiam roupas insinuantes, tentavam provocar a centelha desejada - e daí?

Quando chegava a hora de ir para a cama, onze minutos e pronto. Nenhuma criatividade, nada que levasse ao paraíso; em pouco tempo, a centelha já não tinha mais força para manter o fogo aceso.

Mas era inútil discutir com a moça loura, que julgava que o mundo pode ser explicado em livros. Perguntou de novo onde estava a seção especial, e ali encontrou vários títulos sobre gays, lésbicas, freiras que revelavam coisas escabrosas sobre a igreja, livros ilustrados com técnicas orientais, mostrando posições muito desconfortáveis. Apenas um dos volumes a interessou: O sexo sagrado. Pelo menos esse devia ser diferente.

Comprou-o, foi para casa, colocou o rádio em uma estação que sempre a ajudava a pensar (porque as músicas eram calmas), abriu o livro, notou que tinha várias ilustrações, com posturas que só mesmo quem trabalha em circo pode conseguir praticar. O texto era aborrecido.

Maria aprendera o suficiente em sua profissão para saber que nem tudo na vida era uma questão da posição na qual você se coloca enquanto está fazendo amor, e na maior parte das vezes qualquer variação acontecia de maneira natural, sem pensar, como os passos de uma dança. Mesmo assim, tentou concentrar-se no que lia.

Duas horas depois, deu-se conta de duas coisas.

A primeira, que precisava jantar logo, pois devia retornar ao Copacabana.

A segunda, que a pessoa que escrevera aquele livro não entendia nada, NADA do assunto. Muita teoria, coisas orientais, rituais inúteis, sugestões idiotas. Via-se que o autor tinha meditado no Himalaia (precisava saber onde ficava esse lugar), freqüentado cursos de yoga (já tinha ouvido falar), lido muito sobre o assunto, pois citava um e outro autor, mas não tinha aprend ido o essencial. Sexo não era teoria, incenso queimando, pontos de toque, reverências e salamaleques. Como aquela pessoa (na verdade, uma mulher) ousava escrever sobre um tema que nem Maria, que trabalhava na área, conhecia direito? Talvez fosse culpa do Himalaia, ou da necessidade de complicar algo cuja beleza está na simplicidade e na paixão. Se aquela mulher fora capaz de publicar e vender um livro tão estúpido, era melhor que ela voltasse a pensar seriamente em seu texto, Onze minutos. Não seria cínico nem falso - seria apenas sua história, nada mais.

Mas não tinha nem tempo, nem interesse; precisava concentrar sua energia para deixar Ralf Hart alegre, e para aprender como administrar fazendas.

 

Texto do diário de Maria, logo depois de deixar o aborreci do livro de lado: Eu encontrei um homem, e me apaixonei por ele. Deixei- me apaixonar por uma simples razão: não espero nada. Sei que em três meses estarei longe, ele será uma lembrança, mas não podia agüentar mais viver sem amor; estava no meu limite.

Estou escrevendo uma história para Ralf Hart este é o seu nome. Não estou certa se ele voltará à boate onde trabalho, mas pela primeira vez na minha vida isso não faz a menor diferença. É suficiente amá- lo, estar com ele em meu pensamento, e colorir esta cidade tão bela com seus passos, suas palavras, seu carinho. Quando eu deixar este país, ele terá um rosto, um nome, a lembrança de uma lareira. Tudo o mais que vivi aqui; todas as coisas duras pelas quais passei, não será nada perto desta lembrança.

Gostaria de poder fazer por ele o que ele fez por mim. Estive pensando muito, e descobri que não entrei naquele café por acaso; os encontros mais importantes já foram combinados pelas almas antes mesmo que os corpos se veiam.

Geralmente estes encontros acontecem qua ndo chegamos a um limite, quando precisamos morrer e renascer emocionalmente. Os encontros nos esperam mas a maior parte das vezes evitamos que eles aconteçam. Entretanto, se estamos desesperados, se já não temos mais nada a perder, ou se estamos muito entusiasmados com a vida, então o desconhecido se manifesta, e nosso universo muda de rumo.

 

Todos sabem amar, pois já nasceram com este dom. Algumas pessoas já o praticam naturalmente bem, mas a maioria tem que aprender de novo, relembrar como se ama, e todos - sem exceção - precisam queimar na fogueira de suas emoções passadas, reviver algumas alegrias e dores, quedas e recuperação, até conseguir enxergar o fio condutor que existe por trás de cada novo encontro; sim, existe um fio.

E então, os corpos aprendem a falar a linguagem da alma, isso se chama sexo, é isso que eu posso dar ao homem que me devolveu a alma, embora ele desconheça totalmente sua importância na minha vida. Isso foi o que ele me pediu, e isso ele terá; quero que seja muito feliz.

 

A vida é às vezes muito avara: a pessoa passa dias, semanas, meses e anos sem sentir nada de novo. Entretanto, uma vez que abre uma porta - e esse foi o caso de Maria com Ralf Hart -, uma verdadeira avalanche entra pelo espaço aberto. Em um momento você não tem nada, no momento seguinte tem mais do que consegue aceitar.

Duas horas depois de ter escrito em seu diário, quando chegou ao trabalho, foi procurada por Milan, o dono:

- Então, você saiu com o tal pintor.

Ele devia ser conhecido da casa - ela compreendera isso quando vira Ralf pagar por três clientes, a quantia certa, sem perguntar o preço. Maria apenas fez que "sim" com a cabeça, procurando criar um certo mistério, para o qual Milan não deu a menor importância, já que conhecia aquela vida melhor que ela.

- Talvez já esteja preparada para um próximo passo. Existe um cliente especial que tem sempre perguntado por você. Eu digo que não tem experiência, e ele acredita em mim; mas talvez agora seja hora de tentar.

Cliente especial?

- E o que tem isso a ver com o pintor?

- Também é um cliente especial.

Então tudo o que tinha feito com Ralf Hart já devia ter sido experimentado e feito por outra de suas colegas. Mordeu o lábio, e não disse nada - tinha passado uma bela semana, não podia se esquecer do que escrevera.

- Devo fazer a mesma coisa que fiz com ele?

- Não sei o que fizeram; mas hoje, se alguém lhe oferecer um drink, não aceite. Os clientes especiais pagam melhor, e você não irá se arrepender.

O trabalho começou como de costume. As tailandesas sempre sentando juntas, as colombianas com o mesmo ar de quem entende de tudo, as três brasileiras (incluindo Maria) fingindo um ar distraído, como se nada daquilo fosse novo ou interessante. Havia uma austríaca, duas alemãs, e o resto do elenco era composto de mulheres do antigo Leste Europeu, todas altas, de olhos claros, lindas, e que terminavam casando mais rápido que as outras.

Os homens entraram - russos, suíços, alemães, sempre executivos ocupados, capazes de pagar pelos serviços das prostitutas mais caras de uma das cidades mais caras do mundo.

Alguns se dirigiram a sua mesa, mas ela sempre olhava para Milan, e ele fazia um sinal negativo. Maria estava contente: não teria que abrir as pernas aquela noite, agüentar cheiros, tomar duchas em banheiros nem sempre aquecid os, tudo que precisava era ensinar a um homem, já cansado de sexo, como devia fazer amor. E agora, pensando bem, não era qualquer mulher que teria a mesma criatividade para inventar a história do presente.

Ao mesmo tempo se perguntava: "Por que será que, depois de terem experimentado tudo, querem mesmo voltar ao princípio?" Enfim, isso não era da sua conta; desde que pagassem bem, ela estava ali para servi- los.

Um homem mais jovem que Ralf Hart entrou; bonito, cabelos negros, dentes perfeitos, e um terno que lembrava os chineses - sem gravata, apenas com uma gola alta -e impecável camisa branca por baixo. Dirigiu-se até o bar, olhou para Maria, e ele se aproximou:

- Aceita um drink?

Milan fez que sim com a cabeça, e ela convidou-o para sentar em sua mesa. Pediu seu coquetel de frutas, e estava esperando o convite para dançar, quando o homem se apresentou:

- Meu nome é Terence, e trabalho em uma companhia de discos na Inglaterra. Como sei que estou em um lugar onde posso confiar nas pessoas, penso que isso irá ficar entre nós.

Maria ia começar a falar do Brasil, quando ele a interrompeu:

- Milan disse que você entende o que eu quero.

- Não sei o que você quer. Mas entendo do que faço.

O ritual não foi cumprido; ele pagou a conta, pegou-a pelo braço, e lhe estendeu mil francos. Por um momento, no táxi, ela lembrou-se do árabe com quem tinha ido jantar no restaurante cheio de pinturas famosas; era a primeira vez que voltava a receber a mesma quantia, e, em vez de ficar contente, isso a deixou nervosa.

O táxi parou em um dos hotéis mais caros da cidade. O homem disse boa-noite ao porteiro, demonstrando uma imensa familiaridade com o local. Subiram direto ao seu quarto, uma suíte com vista para o rio. Ele abriu uma garrafa de vinho - possivelmente muito raro - e lhe ofereceu uma taça.

Maria olhava-o enquanto bebia; o que um homem como ele, rico, bonito, desejava de uma prostituta? Como ele quase não falava, ela também permaneceu a maior parte do tempo em silêncio, procurando descobrir o que podia deixar um cliente especial satisfeito.

Entendeu que não devia tomar a iniciativa, mas uma vez que o processo começasse, pretendia acompanhá- lo com a velocidade que fosse necessária; afinal de contas, não era toda noite que ganhava mil francos.

- Temos tempo - disse Terence. - Todo o tempo que quisermos. Pode dormir aqui, se assim desejar.

A insegurança voltou. O homem não parecia intimidado, e falava com uma voz calma, diferente de todos os outros. Sabia o que desejava; colocou uma música perfeita, na altura perfeita, no quarto perfeito, com a janela perfeita, que dava para o lago de uma cidade perfeita. Seu terno era bem cortado, a mala estava em um canto, pequena, como se não precisasse de muita coisa para viajar - ou como se tivesse vindo a Genève apenas por aquela noite.

- Vou dormir em casa - respondeu Maria.

O homem à sua frente mudou por completo. Seus olhos de cavalheiro ganharam um brilho frio, glacial.

- Sente-se ali - disse, apontando para uma cadeira ao lado da escrivaninha.

Era uma ordem! Uma verdadeira ordem. Maria obedeceu e, estranhamente, aquilo a excitou.

- Sente-se direito. Estique as costas, como uma mulher de classe. Se não fizer isso, vou castigá - la.

Castigar! Cliente especial! Em um minuto ela entendeu tudo, tirou os mil francos da bolsa e colocou-os na escrivaninha.

- Eu sei o que você quer - disse, olhando para o fundo daqueles gelados olhos azuis. -

E não estou disposta.

O homem pareceu voltar ao normal, e viu que ela falava a verdade.

- Tome seu vinho - disse. - Não vou forçá- la a nada. Pode ficar mais um pouco, ou pode sair se quiser.

Aquilo a deixou mais tranqüila.

- Tenho um emprego. Tenho um patrão que me protege e acredita em mim. Por favor, não comente nada com ele.

Maria disse isso sem nenhum tom de autopiedade, sem implorar nada - era simplesmente a realidade de sua vida.

Terence também voltara a ser o mesmo homem - nem doce, nem duro, apenas alguém que, ao contrário dos outros clientes, dava a impressão de saber o que desejava. Agora parecia sair de um transe, de uma peça de teatro que ainda não tinha começado.

 

Valia a pena ir embora assim, sem jamais descobrir o que significa um "cliente especial"?

- O que você queria, exatamente?

- Você sabe. Dor. Sofrimento. E muito prazer.

"Dor e sofrimento não combinam com muito prazer", pensou Maria. Embora quisesse desesperadamente acreditar que sim, e desta maneira transformar em positiva uma grande parte das experiências negativas de sua vida.

Ele pegou-a pelas mãos e levou-a até a janela: do outro lado do lago podiam ver a torre de uma catedral - Maria lembrava-se que passara por ali enquanto percorria com Ralf Hart o Caminho de Santiago.

- Você está vendo este rio, este lago, estas casas, aquela igreja? Há quinhentos anos, era tudo mais ou menos igual.

"Só que a cidade estava completamente vazia; uma doença desconhecida havia se espalhado por toda a Europa, e ninguém sabia por que morria tanta gente. Começaram a chamar a doença de peste negra, uma punição que Deus havia enviado ao mundo por causa dos pecados do homem.

"Então, um grupo de pessoas resolveu sacrificar-se pela humanidade. Ofereceram aquilo que mais temiam: a dor física. Passaram a caminhar dia e noite por estas pontes, estas ruas, açoitando o próprio corpo com chicotes ou correntes. Sofriam em nome de Deus, e louvavam a Deus com sua dor. Em pouc o tempo, descobriram que eram mais felizes fazendo isso do que cozinhando o pão, trabalhando na lavoura, alimentando os animais. A dor já não era mais o sofrimento, mas o prazer de resgatar a humanidade dos seus pecados.

A dor se transformara em alegria, no sentido da vida, no prazer."

Seus olhos voltaram a ter o mesmo brilho frio que vira alguns minutos antes. Pegou o dinheiro que ela havia deixado em cima da escrivaninha, retirou cento e cinqüenta francos e colocou-os em sua bolsa.

- Não se preocupe com o seu patrão. Aqui está a comissão dele, e prometo que não direi nada. Pode ir embora.

Ela agarrou todo o dinheiro.

- Não!

- Sabe por que aceito isso? Porque não há maior prazer do que iniciar alguém em um mundo desconhecido. Tirar a virgindade, não do corpo, mas da alma, está entendendo?

Estava entendendo.

- Hoje você poderá fazer perguntas. Mas da próxima vez, quando a cortina do nosso teatro se abrir, a peça começa e não pode parar. Se parar, é porque nossas almas não se combinaram. Lembre-se: é uma peça de teatro. Você tem que ser aquele per de ser. Aos poucos, você vai

descobrir que tal personagem é você mesma, mas até conseguir

Não existe dor, existe algo que se transforma em delícia,

em mistério. Faz parte da peça pedir: "Não me trate assim, está ferindo muito." Faz parte pedir: "Pare, eu não agüento mais!" E

por isso, para evitar o perigo... abaixe a cabeça e não me olhe!

Maria, ajoelhada, abaixou a cabeça e fitava o chão.

- Para evitar que esta relação cause danos físicos sérios, teremos dois códigos. Se um de nós disser "amarelo", isso significa que a violência deve ser reduzida um pouco. Se disser "verme

Os papéis se alternam. Não existe um sem o outro, e nin

guem saberá humilhar se não for também humilhado.

Eram palavras terríveis, vindas de um mundo que não conhecia, cheio de sombra, de lama, de podridão. Mesmo assim, ela sentia vontade de ir adiante - seu corpo estava tremendo, de

A mão de Terence tocou em sua cabeça com uma ternura inesperada.

- Fim.

Pediu que se levantasse. Sem um carinho especia l, mas sem a agressividade seca que demonstrara. Maria vestiu o casaco, ainda tremendo. Terence notou o seu estado.

- Fume um cigarro antes de ir.

- Não aconteceu nada.

- Não precisa. Começará a acontecer em sua alma, e da próxima vez que nos encontrarmos, estará pronta.

- Essa noite valeu mil francos?

Ele não respondeu. Acendeu também um cigarro, e terminaram o vinho, escutaram a música perfeita, saborearam juntos o silêncio. Até que chegou o momento de dizer alguma coisa, e Maria se surpreendeu com suas próprias palavras.

- Não entendo por que tenho vontade de pisar nesta lama.

- Mil francos.

- Não é isso.

Terence parecia contente com a resposta.

-Eu também já me perguntei a mesma coisa. O Marquês de Sade dizia que as mais importantes experiências do homem são aquelas que o levam ao extremo. Só assim aprendemos, porque isso requer toda a nossa coragem.

"Quando um patrão humilha um empregado, ou um homem humilha sua mulher, ele está apenas sendo covarde, ou vingando-se da vida, são pessoas que jamais ousaram olhar no fundo de suas almas, jamais procuraram saber de onde vem o desejo de soltar a fera selvagem, entender que o sexo, a dor, o amor são experiências limite do homem.

"E só quem conhece essas fronteiras conhece a vida; o resto é apenas passar o tempo, repetir uma mesma tarefa, envelhecer e morrer sem ter realmente sabido o que se estava fazendo aqui."

De novo a rua, de novo o frio, de novo a vontade de andar. O homem estava errado, não era preciso conhecer seus demônios para encontrar Deus. Cruzou com um grupo de estudantes que saía de um bar; estavam alegres, tinham bebido um pouco, eram bonitos, cheios de saúde, em breve terminariam a universidade e começariam aquilo que chamam de

"a verdadeira vida". Trabalho, casamento, filhos, televisão, amargura, velhice, sensação de muita coisa perdida, frustrações, doença, invalidez, dependência dos outros, solidão, morte.

O que estava acontecendo? Maria também procurava tranqüilidade para viver sua

"verdadeira vida"; o tempo passado na Suíça, fazendo algo que jamais imaginara fazer em sua vida, era apenas um período difícil, que todas as pessoas enfrentam cedo ou tarde.

Neste período difícil, freqüentava o Copacabana, saía com os homens por dinheiro, vivia a Menina Ingênua, a Mulher Fatal e a Mãe Compreensiva, dependendo do cliente. Era apenas um trabalho, ao qual se dedicava com o máximo de profissionalismo - por causa das gorjetas - e o mínimo de interesse com medo de acostumar-se com ele. Passara nove meses controlando o mundo ao seu redor, e pouco tempo antes de voltar para sua terra, estava se descobrindo capaz de amar sem exigir nada em troca, e sofrer sem motivo. Como se a vida tivesse escolhido este meio sórdido, estranho, para ensinar- lhe algo sobre seus próprios mistérios, sua luz e suas trevas.

 

Do diário de Maria na noite em que encontrou Terence pela primeira vez: Ele citou Sade, de quem eu nunca tinha escutado uma só palavra, apenas os comentários tradicionais sobre sadismo: "só nos conhecemos quando encontramos nossos próprios limites", o que está certo. Mas também está errado, porque não é importante conhecer tudo a respeito de nós mesmos; o ser humano não foi feito só para buscar a sabedoria, mas também para arar aterra, esperara chuva, plantar o trigo, colher o grão, fazer o pão.

Sou duas mulheres: uma deseja ter toda a alegria, a paixão, as aventuras que a vida pode dar. A outra quer ser escrava de uma rotina, da vida familiar, das coisas que podem ser planejadas e cumpridas. Sou a dona de casa e a prostituta, ambas vivendo no mesmo corpo, e uma lutando contra a outra.

O encontro de uma mulher consigo mesma é uma brincadeira com sérios riscos. Uma dança divina. Quando nos encontramos, somos duas energias divinas, dois universos que se chocam. Se o encontro não tem a reverência necessária, um universo destrói o outro.

Estava de novo na sala de estar da casa de Ralf Hart, o fogo na lareira, o vinho, os dois sentados no chão, e tudo o que experimentara no dia anterior com aquele executivo inglês não passava de um sonho ou um pesadelo - dependendo de seu estado de espírito.

Agora voltava a buscar sua razão de viver - melhor dizendo, a entrega mais louca possível, aquela em que a pessoa oferece seu coração e nada pede em troca.

Crescera muito enquanto esperava este momento. Descobrira, finalmente, que o amo r real nada tinha a ver com o que imaginava, ou seja, uma cadeia de acontecimentos provocados pela energia amorosa - namoro, compromisso, casamento, filhos, espera, cozinha, parque de diversões aos domingos, mais espera, velhice juntos, a espera acabou e em seu lugar veio a aposentadoria do marido, as doenças, a sensação de que já é muito tarde para viver juntos o que sonhavam.

Olhou para o homem a quem decidira se entregar, e a quem decidira jamais contar o que sentia, porque o que sentia agora estava longe de qualquer forma, inclusive a física. Ele parecia mais à vontade, como se estivesse começando um período interessante de sua existência. Estava sorrindo, contava histórias de sua recente viagem a Munique, para encontrar-se com um importante diretor de museu.

- Perguntou se a tela sobre as faces de Genève estava pronta. Eu disse que tinha encontrado uma das principais pessoas que gostaria de pintar. Uma mulher cheia de luz.

Mas não quero falar de mim, quero abraçá- la. Eu a desejo.

Desejo. Desejo? Desejo! Isso, esse era o ponto de partida para aquela noite, porque era algo que ela conhecia muito bem!

Por exemplo: desperta-se o desejo não entregando logo o seu objeto.

- Então: me deseje. Estamos fazendo isso, neste momento. Você está a menos de um metro de mim, foi até uma boate, pagou por meus serviços, sabe que tem o direito de tocar-me. Mas não ousa. Olhe- me. Olhe- me, e pense que talvez eu não queira que você me olhe.

Imagine o que está escondido debaixo de minha roupa.

Sempre usava vestidos pretos para trabalhar, e não entendia por que as outras meninas do Copacabana tentavam ser provocantes com seus decotes e cores agressivas. Para ela, excitar um homem era vestir-se como qualquer mulher que ele pudesse encontrar no escritório, no trem, ou na casa de uma amiga da mulher.


Date: 2015-12-17; view: 690


<== previous page | next page ==>
Agradecimentos especiais a Klaus. 7 page | Agradecimentos especiais a Klaus. 9 page
doclecture.net - lectures - 2014-2024 year. Copyright infringement or personal data (0.015 sec.)