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Agradecimentos especiais a Klaus. 7 page

Entretanto, agora a situação era diferente. Por melhores que fossem as razões (vou para o Brasil, trabalho em uma boate, não tivemos tempo de nos conhecer bem, não estou interessada em sexo, não quero saber de amor, preciso aprender a administrar fazendas, não entendo nada de pintura, vivemos em mundos diferentes), a vida lhe fazia um desafio. Não era mais criança, precisava escolher.

Preferiu não responder. Apertou a mão do pintor, como era o costume naquela terra, e partiu em direção a sua casa. Se ele fosse mesmo o homem que gostaria que fosse, não se deixaria intimidar por seu silêncio.

Trecho do diário de Maria, escrito naquele mesmo dia:

Hoje, enquanto andávamos em volta do lago, por este estranho Caminho de Santiago, o homem que estava comigo - um pintor, uma vida diferente da manha jogou uma pedrinha na água. No lugar onde a pedra caiu, apareceram pequenos círculos que foram se ampliando, expandindo, até atingirem um pato que passava por ali casualmente, e nada tinha a ver com a pedra. Em vez de ficar assustado com a onda inesperada, ele resolveu brincar com ela.

Algumas horas antes desta cena, eu entrei em um café, escutei uma voz, e foi como se Deus tivesse atirado uma pedrinha naquele lugar. As ondas de energia tocaram a mim e a um homem que estava em um canto, pintando um quadro. Ele sentiu a vibração da pedra, eu também. E agora?

O pintor sabe quando encontra um modelo. O músico sabe quando o seu instrumento está afinado. Aqui, neste meu diário, eu tenho consciência de que certas frases não são escritas por mim, mas por uma mulher cheia de "luz"; que sou e me recuso a aceitar.

Posso continuar assam. Mas posso também, como 0 patinho no lago, divertir- me e alegrar- me com a marola que chegou de repente e desequilibrou a água.

Existe um nome para esta pedra: paixão. Ela pode descrever a beleza de um encontro fulminante entre duas pessoas, mas não se limita a isso. Está na excitação do inesperado, na vontade de fazer alguma coisa com fervor, na certeza de que se vai conseguir realizar um sonho. A paixão nos dá sinais que nos guiam a vida - e cabe a mira saber decifrar estes sanais.

Gostaria de acreditar que estou apaixonada. Por alguém que não conheço, e que não estava nos meus planos. Todos estes meses de autocontrole, de recusado amor, resultaram exatamente no oposto: deixar- me levar pela primeira pessoa que me deu uma atenção diferente.

Ainda bem que não peguei seu telefone, que não sei onde mora, que posso perdê-lo sem me culpar por ter perdido a oportunidade.

E se for esse o caso, mesmo que já o tenha perdido, eu ganhei um dia feliz na minha vida. Considerando o mundo como ele é, um dia feliz é quase um milagre.



 

 

Quando entrou no Copacabana naquela noite, ele estava lá, esperando. Era o único freguês. Milan, que acompanhava a vida daquela brasileira com uma certa curiosidade, viu que a menina havia perdido a batalha. - Aceita um drink? - Preciso trabalhar. Não posso perder meu emprego. - Sou um cliente. Estou fazendo uma proposta profissional. Aquele homem, que no café durante a tarde parecia tão seguro de si mesmo, que manejava bem o pincel, encontrava grandes personagens, tinha uma agente em Barcelona, e devia ganhar muito dinheiro, agora mostrava sua fragilidade, entrara no ambiente que não devia, não estava mais em um romântico café no Caminho de Santiago. O encanto da tarde desapareceu.

- Então, aceita o drink?

- Aceito outra hora. Hoje já tenho clientes que me esperam.

Milan escutou o final da frase; estava enganado, a menina não se deixara levar pela armadilha das promessas de amor. Mesmo assim, no final de uma noite sem muito movimento, ficou se perguntando por que ela havia preferido a companhia de um velho, de um contador medíocre e de um agente de seguros.

Bem, o problema era dela. Desde que pagasse a sua comissão, não cabia a ele decidir com quem devia ou não ir para a cama.

 

 

Do diário de Maria, após a noite com o velho, o contador e o agente de seguros: O que este pintor quer de mim? Não sabe que somos de países, culturas, sexos diferentes? Pensa que sei maus sobre o prazer do que ele, e quer aprender algo?

Por que não me disse nada além de "sou um cliente"? Era tão fácil dizer: "senti sua falta", ou "adorei a tarde que passamos juntos". Eu responderia da mesma maneira (sou uma profissional), mas ele tem obrigação de entender minhas inseguranças, porque sou mulher, sou frágil, e naquele lugar sou uma outra pessoa.

Ele é um homem. E um artista: tem a obrigação de saber que o grande objetivo do ser humano é compreender o amor total. O amor não está no outro, está dentro de nós mesmos; nós o despertamos. Mas para este despertar, precisamos do outro. O universo só faz sentido quando temos com quem dividir nossas emoções.

Ele está cansado de sexo? Eu também - e, no entanto, nem ele nem eu sabemos o que é isso. Estamos deixando morrer uma das coisas mais importantes da vida -precisava ser salva por ele, precisava salvá- lo, mas ele não me deixou nenhuma escolha.

Estava apavorada. Começava a perceber que, depois de tanto autocontrole, a pressão, o terremoto, o vulcão de sua alma dava sinais de querer explodir, e a partir do momento em que isso acontecesse, não teria mais como controlar seus sentimentos. Quem era aquela droga de artista, que podia muito bem estar mentindo a respeito de sua vida, com quem passara não mais que algumas horas, que não a tocara, não tentara seduzi- Ia podia haver algo pior do que isso?

Por que seu coração dava sinais de alarme? Porque achava que ele sentia a mesma coisa - mas, claro, estava muito enganada. Ralf Hart queria encontrar-se com a mulher capaz de despertar o fogo que estava quase se apagando; queria transformá- la em sua grande deusa do sexo, com uma "luz especial" (e nisso ele fora sincero), pronta a pegar suas mãos e mostrar- lhe o caminho de volta à vida. Não podia imaginar que Maria sentia o mesmo desinteresse, tinha seus problemas (mesmo depois de tantos homens, não conseguira seu orgasmo durante a penetração), estivera fazendo planos aquela manhã, e organizara uma volta triunfante a sua terra.

Por que pensava nele? Por que pensava em alguém que neste exato momento podia estar pintando outra mulher, dizendo que tinha uma "luz" especial, que podia ser sua deusa do sexo?

"Penso nele porque pude conversar."

Que ridículo! Pensava também na bibliotecária? Não. Pensava em Nyah, a filipina, única de todas as mulheres do Copacabana com quem podia dividir um pouco de seus sentimentos? Não, não pensava. E eram pessoas com quem estivera muitas vezes, e com quem se sentia à vontade.

Procurou desviar a atenção para o calor que estava fazendo, ou para o supermercado que não conseguira visitar no dia anterior. Escreveu uma longa carta para seu pai, cheia de detalhes a respeito do terreno que gostaria de comprar -isso deixaria sua família contente.

Não marcou a data da volta, mas deu a entender que seria breve. Dormiu, acordou, dormiu de novo, tornou a despertar. Descobriu que o livro sobre fazendas era muito bom para os suíços, mas não servia para os brasileiros - os mundos eram completamente distintos.

Durante a tarde, viu que o terremoto, o vulcão, a pressão diminuía. Ficou mais relaxada; este tipo de paixão súbita já tinha acontecido outras vezes, e terminava sempre no dia seguinte - que bom, o seu universo continuava o mesmo. Tinha uma família que a amava, um homem que a esperava, e que agora lhe escrevia com muita freqüência, contando que a loja de tecidos estava crescendo. Mesmo que resolvesse pegar o avião naquela noite, tinha dinheiro suficiente para pelo menos comprar um sítio. Ultrapassara a pior parte, a barreira da língua, a solidão, o primeiro dia no restaurante com o árabe, a maneira como convencera sua alma a não reclamar do que fazia com seu corpo. Sabia muito bem qual o seu sonho, e estava disposta a tudo por ele. E este sonho não incluía homens, por sinal. Pelo menos, não incluía homens que não falassem sua língua materna, e que não vivessem em sua cidade.

Quando o terremoto acalmou, Maria entende u que parte da culpa era sua. Porque não dissera, naquele momento: "Eu estou sozinha, sou tão miserável quanto você, ontem você viu minhàluz', e foi a primeira coisa bonita e sincera que um homem me disse desde que cheguei aqui."

No rádio tocava uma velha canção: "Meus amores morrem antes mesmo de nascer."

Sim, este era o seu caso, seu destino.

Trecho do diário de Maria, dois dias depois de tudo voltar ao normal: A paixão faz a pessoa parar de comer, dormis trabalhar, estar em paz. Muita gente fica assustada porque, quando aparece, derruba todas as coisas velhas que encontra.

Ninguém quer desorganizar seu mundo. Por isso, muita gente consegue controlar esta ameaça, e são capazes de manter de pé uma casa ou uma estrutura que já está podre. São os engenheiros das coisas superadas.

Outras pessoas pensam exatamente o contrário: entregam- se sem pensar, esperando encontrar na paixão as soluções para todos os seus problemas. Colocam na outra pessoa toda a responsabilidade por sua felicidade, e toda culpa por sua possível infelicidade. Estão sempre eufóricas porque algo de maravilhoso aconteceu, ou deprimidas porque algo que não esperavam terminou destruindo tudo.

Afastar-se da paixão, ou entregar-se cegamente a ela - qual destas duas atitudes é a menos destruidora?

Não sei.

 

No terceiro dia, como ressuscitando dos mortos, Ralf Hart voltou - e quase chega um pouco tarde, porque Maria já estava conversando com outro freguês. Quando o viu, porém, ela disse educadamente ao outro que não queria dançar, estava esperando alguém.

Só então se deu conta de que esperara por ele todos estes dias. E neste momento, aceitou tudo que o destino colocara em seu caminho.

Não reclamou; ficou contente, podia dar-se a este luxo, porque um dia iria partir daquela cidade, sabia que este amor era impossível e, portanto, já que não esperava nada, teria tudo que ainda esperava daquela etapa de sua vida.

Ralf perguntou se ela queria um drink, e Maria pediu um coquetel de frutas. O dono do bar, fingindo que lavava copos, olhou para a brasileira sem entender nada: o que a teria feito mudar de idéia? Esperava que não ficasse ali apenas tomando a bebida, e ficou aliviado quando ele a tirou para dançar. Estavam cumprindo o ritual, não havia motivo para preocupações.

Maria sentia a mão em volta de sua cintura, o rosto colado, o som muito alto que -

graças a Deus - impedia qualquer conversa. Um coquetel de frutas não bastava para tomar coragem, e as poucas palavras que tinham trocado foram muito formais. Agora era uma questão de tempo: iriam para um hotel? Fariam amor? Não devia ser difícil, já que ele havia dito que não se interessava por sexo, agora era apenas uma questão de cumprir seu compromisso profissional. Isso ajudaria a matar qualquer vestígio de uma possível paixão -

não sabia por que havia se torturado tanto logo após o primeiro encontro.

Esta noite seria a Mãe Compreensiva. Ralf Hart era apenas um homem desesperado, como milhões de outros. Se desempenhasse bem o seu papel, se conseguisse seguir o roteiro que havia estabelecido para si mesma desde que começara a trabalhar no Copacabana, não teria com o que se preocupar. Era muito arriscado ter aquele homem por perto, agora que sentia seu cheiro - e gostava -, experimentava seu toque - e gostava -, descobrira-se esperando por ele - e não gostava.

Em quarenta e cinco minutos já tinham cumprido todas as regras, e o homem se dirigira ao dono da boate:

"Vou levá - la para o resto da noite. Pagarei como se fossem três clientes."

O dono deu de ombros, e pensou de novo que a moça brasileira ia terminar caindo na armadilha do amor. Maria, por seu lado, ficou surpresa: não sabia que Ralf Hart conhecia tão bem as regras.

- Vamos até minha casa.

Talvez essa fosse mesmo a melhor decisão, pensou ela. Embora fosse contra todas as recomendações de Milan, neste caso resolveu abrir uma exceção. Além de descobrir de uma vez por todas se era ou não casado, conheceria a maneira de viver dos pintores famosos, e um dia poderia escrever qualquer coisa para o jornal de sua pequena cidade - de modo que todos ficassem sabendo que, durante seu período na Europa, ela freqüentara círculos intelectuais e artísticos.

"Que desculpa absurda."

Meia hora depois chegaram a um pequeno vilarejo próximo de Genève, chamado Cologny; uma igreja, a padaria, a prefeitura, tudo em seu lugar. E era realmente uma casa de dois andares, não um apartamento! Primeira avaliação: devia ter mesmo dinheiro.

Segunda avaliação: se fosse casado, não ousaria fazer aquilo, porque sempre havia gente olhando.

Então, era rico e solteiro.

Entraram por um hall com uma escada que levava ao segundo andar, mas seguiram direto, até as duas salas na parte de trás, que davam para um jardim. Uma delas tinha uma mesa de jantar, e as paredes eram cobertas de quadros. A outra sala tinha alguns sofás, cadeiras, estantes cheias de livros, cinzeiros sujos, copos que tinham sido usados havia muito tempo e que ainda permaneciam ali.

- Posso preparar um café.

Maria fez um sinal negativo com a cabeça. Não, não pode preparar um café. Ainda não pode me tratar diferente. Estou desafiando meus próprios demônios, fazendo exatamente tudo ao contrário do que prometi a mim mesma. Mas vamos com calma; hoje farei o papel de prostituta, ou de amiga, ou de Mãe Compreensiva, embora na minha alma eu seja uma Filha que precisa de carinho. Finalmente, quando tudo estiver terminado, você pode me preparar um café.

- No fundo do jardim está meu estúdio, minha alma. Aqui, entre todos estes quadros e livros, está meu cérebro, o que penso.

Maria pensou em sua própria casa. Não tinha um jardim no fundo. Nem livros, apenas os emprestados da biblioteca, já que não havia necessidade de gastar dinheiro com o que podia conseguir de graça. Tampouco havia quadros, apenas um pôster do Circo Acrobático de Shanghai, a que ela sonhava assistir.

Ralf pegou uma garrafa de uísque e lhe ofereceu.

- Não, obrigada.

Ele serviu-se uma dose, e virou tudo - sem gelo, sem tempo. Começou a falar coisas inteligentes, e por mais que a conversa lhe interessasse, ela sabia que aquele homem estava com medo do que ia acontecer, agora que es tavam sozinhos. Maria recuperava o controle da situação.

Ralf serviu outra dose a si mesmo, e como se estivesse dizendo alguma coisa sem importância, comentou:

- Preciso de você.

Uma pausa. Um silêncio longo. Não ajude a quebrar este silêncio, vamos ver como ele continua.

- Preciso de você, Maria. Você tem luz, embora ache que ainda não acredita em mim, ache que estou apenas tentando seduzi-Ia com esta conversa. Não me pergunte: "Por que eu? O que tenho de especial?" Você não tem nada de especial, nada que eu possa explicar a mim mesmo. Entretanto - eis o mistério da vida -não consigo pensar em outra coisa.

- Não iria lhe perguntar isso - mentiu.

- Se eu procurasse uma explicação, diria: a mulher que está diante de mim conseguiu superar o sofrimento e transformá - lo em algo positivo, criativo. Mas isso não basta para explicar tudo.

Estava ficando difícil escapar. Ele continuou:

- E eu? Com toda a minha criatividade, com meus quadros que são disputados e desejados por galerias em todo o mundo, com o meu sonho realizado, com a minha aldeia sabendo que sou um filho querido, com as minhas mulheres jamais me cobrando pensão ou coisas assim, com saúde, boa aparência, tudo que um homem pode sonhar, e eu? Aqui estou, dizendo para uma mulher que encontrei em um café, e com quem passei apenas uma tarde: "preciso de você". Sabe o que é solidão?

- Sei o que é.

-Mas não sabe o que é solidão quando se tem a possibilidade de estar com todo mundo, quando se recebe todas as noites um convite para uma festa, um coquetel, uma estréia de teatro. Quando o telefone toca sempre, e são mulheres que adoram o seu trabalho, que dizem que gostariam muito de jantar com você - são belas, inteligentes, educadas. E

algo o empurra para longe e diz: não vá. Você não vai se divertir. Mais uma vez você ficará a noite inteira tentando impressioná - las, gastará sua energia provando para si mesmo como é capaz de seduzir o mundo.

"Então fico em casa, entro em meu estúdio, procuro a luz que vi em você, e só consigo ver esta luz enquanto estou trabalhando."

- O que posso lhe dar que você já não tenha? - respondeu ela, sentindo-se um pouco humilhada por aquele comentário sobre outras mulheres, mas lembrando-se de que, afinal de contas, ele tinha pagado para tê- la ao seu lado.

Ele bebeu a terceira dose. Maria acompanhou-o em sua imaginação, o álcool queimando sua garganta, seu estômago, entrando em sua corrente sangüínea e enchendo-o de coragem, e ela sentindo-se também embriagada, embora não tivesse bebido uma só gota.

A voz de Ralf Hart soou mais firme.

- Está bem. Não posso comprar seu amor, mas você disse que conhecia tudo sobre sexo. Ensine- me, então. Ou me ensine algo sobre o Brasil. Qualquer coisa, desde que possa estar ao seu lado.

E agora?

- Só conheço duas cidades do meu país: a cidade em que nasci, e o Rio de janeiro.

Quanto ao sexo, não acredito que possa lhe ensinar nada. Tenho quase 23 anos, você é apenas seis anos mais velho, mas sei que viveu muito mais intensamente. Conheço homens que me pagam para fazer o que eles querem, e não o que eu quero.

- Já fiz tudo que um homem pode sonhar fazer com uma, duas, três mulheres ao mesmo tempo. E não sei se aprendi muito.

De novo o silêncio, só que era a vez de Maria falar. E ele não ajudou - como ela não o ajudara antes.

- Você me quer como uma profissional?

- Eu a quero como você quiser.

Não, ele não podia ter respondido isso, porque era tudo que ela desejava escutar. De novo o terremoto, o vulcão, a tempestade. Ia ser impossível escapar de sua própria armadilha, ia perder este homem, sem jamais o ter verdadeiramente.

- Você sabe, Maria. Ensine-me. Talvez isso me salve, a salve, nos traga de volta à vida. Tem razão, tenho apenas mais seis anos do que você, e mesmo assim já vivi o equivalente a muitas vidas. Passamos por experiências completamente distintas, mas estamos ambos desesperados. A única coisa que nos deixa em paz é estarmos juntos.

Por que ele dizia estas coisas? Não era possível, e mesmo assim era verdade. Tinham se visto apenas uma vez e já precisavam um do outro. Imagine se continuassem se encontrando, que desastre! Maria era uma mulher inteligente, com muitos meses de leituras e observação do gênero humano; tinha um propósito na vida, mas também tinha uma alma, que precisava conhecer e cuja "luz" tinha que descobrir.

Já estava ficando cansada de ser quem era, e embora a viagem próxima para o Brasil fosse um desafio interessante, ainda não aprendera tudo que podia. Ralf Hart era um homem que havia aceitado desafios, aprendera tudo, e agora pedia àquela moça, àquela prostituta, àquela Mãe Compreensiva, que o salvasse. Que absurdo!

Outros homens já haviam se comportado da mesma maneira diante dela. Muitos não tinham conseguido ter uma ereção, outros queriam ser tratados como crianças, outros ainda diziam que gostariam de tê-la como esposa porque se excitavam ao saber que a mulher tivera muitos amantes. Embora ainda não tivesse conhecido nenhum dos "clientes especiais", já descobrira o gigantesco universo de fantasias que habitava a alma humana.

Mas todos estavam acostumados com seus mundos, e nunca lhe haviam pedido "leve-me embora daqui". Pelo contrário, queriam carregar Maria consigo.

E mesmo que todos estes muitos homens sempre lhe tivessem deixado com algum dinheiro e sem nenhuma energia, não era possível que ela não tivesse aprendido nada.

Entretanto, se algum deles realmente estivesse procurando o amor, e se o sexo fosse apenas uma parte nesta busca, como ela gostaria de ser tratada? O que seria importante acontecer no primeiro encontro?

O que realmente gostaria que acontecesse?

- Ganhar um presente - disse Maria.

Ralf Hart não entendeu. Presente? Ele já lhe pagara adiantado pela noite, no táxi, porque conhecia o ritual. O que queria dizer com aquilo?

Maria de repente se dera conta de que entendia, naquele minuto, o que uma mulher e um homem precisavam sentir. Pegou-o pelas mãos e o conduziu até uma das salas.

- Não vamos subir para o quarto - disse.

Apagou quase todas as luzes, sentou-se no tapete e pediu que ele se sentasse diante dela. Notou que havia uma lareira no lugar.

- Acenda a lareira.

- Mas estamos no verão.

- Pois saiba que a pessoa que está com você tem que existir. Pense nela. Pense se ela deseja uísque, ou gim, ou café. Pergunte o que ela quer.

- O que você quer beber?

- Vinho. E gostaria que me acompanhasse.

Ele deixou a garrafa de uísque, e voltou com uma de vinho. A esta altura, o fogo já queimava as toras; Maria apagou as poucas luzes que tinham ficado acesas, deixando que apenas as chamas iluminassem o ambiente. Comportava -se como sempre tivesse sabido que aquele era o primeiro passo: reconhecer o outro, saber que está ali.

Abriu a bolsa e achou lá dentro uma caneta que comprara em um supermercado.

Qualquer coisa servia.

- Isso é para você. Quando comprei, pensava em ter algo para anotar as idéias sobre administração de fazendas. Usei-a durante dois dias, trabalhei até ficar cansada. Ela tem um pouco do meu suor, da minha concentração, da minha vontade, e eu a estou lhe entregando agora.

Depositou a caneta suavemente na mão de Ralf.

- Em vez de comprar- lhe algo que você gostaria de ter, estou lhe dando algo que é meu, realmente meu. Um presente. Um sinal de respeito pela pessoa diante de mim, pedindo que ela compreenda o quanto é importante estar ao seu lado. Agora ela tem consigo uma pequena parte de mim mesma, que entreguei de livre e espontânea vontade.

Ralf levantou-se, foi até a estante e voltou com um objeto.

Estendeu-o para Maria:

- Este é um vagão de um trem elétrico que eu tinha quando era menino. Não tinha autorização para brincar com ele sozinho, porque meu pai dizia que era caro, importado dos Estados Unidos. Então, só me restava esperar que ele tivesse vontade de montar o trem no meio da sala, mas geralmente ele passava os domingos escutando ópera. Por isso, o trem sobreviveu à minha infância, mas não me deu nenhuma alegria. Lá em cima tenho guardado todos os trilhos, a locomotiva, as casas, até mesmo 0 manual; porque eu tinha um trem que não era meu, com o qual eu não brincava.

"Oxalá tivesse sido destruído como todos os outros brinquedos que ganhei e de que nem me lembro, porque esta paixão de destruir faz parte da maneira como a criança descobre o mundo. Mas este trem intacto me lembra sempre uma parte da minha infância que eu não vivi, porque era preciosa demais, ou trabalhosa demais para o meu pai. Ou talvez porque, cada vez que montava o trem, tivesse medo de demonstrar seu amor por mim."

Maria começou a olhar fixamente o fogo na lareira. Algo estava acontecendo - e não era o vinho, nem o ambiente acolhedor. Era a entrega de presentes.

Ralf também se virou para o fogo. Ficaram calados, escutando o crepitar das chamas.

Beberam vinho, como senão fosse importante dizer nada, falar nada, fazer nada. Apenas estar ali, um com o outro, olhando na mesma direção.

-Tenho muitos trens intactos na minha vida -disse Maria, depois de um tempo. - Um deles é o meu coração. Também só brincava com ele quando o mundo colocava os trilhos, e nem sempre era o momento certo.

- Mas você amou.

-Sim, eu amei. Eu amei muito. Eu amei tanto que, quando o meu amor me pediu um presente, eu tive medo e fugi.

- Não entendo.

- Não precisa. Estou lhe ensinando, porque descobri algo que não sabia. O presente. A entrega de alguma coisa que é sua. Dar antes de pedir algo que seja importante. Você tem meu tesouro: a caneta com que escrevi alguns de meus sonhos. Eu tenho seu tesouro: o vagão de trem, parte da infância que você não viveu.

"Eu agora carrego comigo parte do seu passado, e você guarda consigo um pouco do meu presente. Que bom."

Disse tudo isso sem pestanejar, sem estranhar seu comportamento, como se soubesse havia muito tempo que esta era a melhor e única maneira de agir. Levantou-se com suavidade, pegou seu casaco no cabide, e deu- lhe um beijo no rosto. Ralf Hart, em nenhum momento, fez menção alguma de levantar-se de onde estava, hipnotizado pelo fogo, possivelmente pensando em seu pai.

- Nunca entendi direito por que guardava esse vagão. Hoje ficou claro: para entregar-lhe em uma noite de lareira acesa. Agora esta casa fica mais leve.

Ele disse que, no dia seguinte, iria doar o resto dos trilhos, locomotivas, pastilhas que imitavam fumaça, a algum asilo.

- Talvez hoje este trem seja uma raridade que não se fabrica mais e valha muito dinheiro - advertiu Maria, para logo se arrepender. Não se tratava disso, mas de livrar-se de algo que custa ainda mais caro ao nosso coração.

Antes que tornasse a dizer coisas que não combinavam com o momento, tornou a dar-lhe um beijo no rosto e dirigiu-se até a porta. Ele ainda continuava olhando o fogo, e ela pediu, delicadamente, que viesse abri-Ia.

Ralf levantou-se e ela explicou que, embora estivesse contente de vê-lo olhando o fogo, os brasileiros têm uma estranha superstição: quando visitam alguém pela primeira vez, não podem abrir a porta na hora da saída, porque se fizerem isso, jamais retornarão àquela casa.

- E eu quero voltar.

- Embora não tenhamos tirado a roupa e eu não tenha entrado em você, nem sequer a tenha tocado, nós fizemos amor.


Date: 2015-12-17; view: 694


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