Home Random Page


CATEGORIES:

BiologyChemistryConstructionCultureEcologyEconomyElectronicsFinanceGeographyHistoryInformaticsLawMathematicsMechanicsMedicineOtherPedagogyPhilosophyPhysicsPolicyPsychologySociologySportTourism






Agradecimentos especiais a Klaus. 6 page

- Espere um pouco.

Olhou surpreendida para o lado. Aquilo ali era um bar respeitável, não era o Copacabana, onde os homens têm direito de dizer isso, embora as mulheres possam responder "vou sair, e você não irá me impedir".

Preparava -se para ignorar o comentário, mas sua curiosidade foi mais forte, e ela se virou em direção à voz. O que viu foi uma cena estranha: um homem de aproximadamente trinta anos (ou será que devia pensar "um rapaz de aproximadamente trinta anos?" Seu mundo tinha envelhecido muito rápido), de cabelos compridos, ajoelhado no chão, com vários pincéis espalhados ao seu lado - desenhando um senhor, sentado em uma cadeira, com um copo de anis ao seu lado. Não os havia notado quando entrara.

- Não vá embora. Estou terminando este retrato, e gostaria de pintá- la também.

Maria respondeu - e ao responder, criou o laço que faltava no universo.

- Não estou interessada.

- Você tem luz. Deixe- me pelo menos fazer um esboço.

O que era esboço? O que era "luz"? Não deixava de ser uma mulher vaidosa, imagine ter o seu retrato feito por alguém que parecia sério! Começou a delirar: e se fosse um pintor famoso? Ela seria imortalizada para sempre em uma tela! Exposta em Paris, ou em Salvador da Bahia! Um mito!

Por outro lado, o que fazia aquele homem, com toda aquela bagunça a sua volta, em um bar tão caro e possivelmente bem freqüentado?

Adivinhando seu pensamento, a moça que atendia os clientes disse baixinho:

- Ele é um artista muito conhecido.

Sua intuição não falhara. Maria procurou controlar-se e manter o sangue-frio.

- Vem aqui de vez em quando, e traz sempre um cliente importante. Diz que gosta do ambiente, que fica inspirado. Está fazendo um painel com as pessoas que representam a cidade, foi uma encomenda da prefeitura.

Maria olhou para o homem que estava sendo pintado. De novo a garçonete leu seu pensamento.

- É um químico que fez uma descoberta revolucionária. Ganhou o prêmio Nobel.

- Não vá embora - repetiu o pintor. - Vou terminar em cinco minutos. Peça o que quiser e coloque na minha conta.

Como que hipnotizada pela ordem, ela sentou-se no bar, pediu um coquetel de anis (como não costumava beber, a única coisa que lhe ocorreu foi imitar o tal prêmio Nobel), e ficou olhando o homem trabalhar. "Não represento a cidade, por isso ele deve estar interessado em outra coisa. Mas não faz meu tipo", pensou automaticamente, repetindo o que sempre dizia para si mesma desde que começara a trabalhar no Copacabana; era sua tábua de salvação e sua renúncia voluntária às armadilh as do coração.



Uma vez isso bem claro, não custava esperar um pouco talvez a moça no balcão estivesse certa, e aquele homem pudesse abrir as portas de um mundo que não conhecia, mas com o qual sempre sonhara: afinal de contas, não tinha pensado em seguir a carreira de modelo?

Ficou observando a agilidade e a rapidez com que ele concluía o seu trabalho - pelo visto era uma tela muito grande, mas estava completamente dobrada, e ela não podia ver os outros rostos ali retratados. E se agora tivesse uma nova oportunidade?

O homem (resolvera que era "homem", e não "rapaz", porque senão iria começar a sentir-se velha demais para sua idade) não parecia o tipo que faz aquela proposta apenas para passar uma noite com ela. Cinco minutos depois, conforme prometera, ele havia terminado seu trabalho, enquanto Maria se concentrava no Brasil, no seu futuro brilhante, e na absoluta falta de interesse que tinha em conhecer pessoas novas que pudessem colocar todos aqueles planos em risco.

- Obrigado, já pode mudar de posição - disse o pintor para o químico, que pareceu acordar de um sonho.

E, virando-se para Maria, disse sem rodeios:

- Vá para aquele canto e fique à vontade. A luz está ótima.

Como se tudo já estivesse combinado pelo destino, como se fosse a coisa mais natural do mundo, como se sempre em sua vida tivesse conhecido aquele homem, ou tivesse vivido aquele momento em sonhos e agora soubesse o que fazer na vida real, Maria pegou seu copo de anis, a bolsa, os livros sobre administração de fazendas, e dirigiu-se ao lugar indicado pelo homem uma mesa perto da janela. Ele trouxe os pincéis, a tela grande, uma série de pequenos vidros cheios de tinta de diversas cores, um maço de cigarros, e ajoelhou-se aos seus pés.

- Fique sempre na mesma posição.

- É pedir muito; minha vida está sempre em movimento.

Era uma frase que considerava brilhante, mas o rapaz não deu maior atenção. Maria, procurando manter a naturalidade, porque o olhar dele a deixava muito desconfortável, apontou para o lado de fora da janela, onde se via a rua e a placa:

- O que é "Caminho de Santiago"?

- Uma rota de peregrinação. Na Idade Média, gente de toda a Europa passava por esta rua em direção a uma cidade na Espanha, Santiago de Compostela.

 

Ele dobrou uma parte da tela e preparou os pincéis. Maria continuava sem saber direito o que fazer.

- Quer dizer que, se eu seguir por esta rua, chego à Espanha?

- Dois ou três meses depois. Mas posso lhe pedir um favor? Fique em silêncio; isso não demora mais que dez minutos. E tire o pacote da mesa.

- São livros - respondeu ela, com uma certa dose de irritação por causa do tom autoritário do pedido. Ele precisava saber que estava diante de uma mulher culta, que gastava seu tempo em bibliotecas, não em lojas. Mas ele mesmo pegou o pacote e colocou-o no chão, sem nenhuma cerimônia.

Não tinha conseguido impressioná-lo. Aliás, não tinha a menor intenção de impressioná- lo, estava fora do seu horário de trabalho, guardaria a sedução para mais tarde, com homens que pagavam bem pelo seu esforço. Por que tentar relacionar-se com aquele pintor, que talvez não tivesse dinheiro nem para convidá-la para um café? Um homem de trinta anos não deve usar cabelos longos, fica ridículo. Por que achava que não tinha dinheiro? A moça do bar dissera que era uma pessoa conhecida - ou será que o químico é que era famoso? Olhou a maneira como estava vestido, mas não adiantava muito; a vida tinha lhe ensinado que homens vestidos displicentemente - que era o caso - pareciam sempre ter mais dinheiro do que os que usavam terno e gravata.

"O que faço pensando neste homem? O que me interessa é o quadro."

Dez minutos não eram um preço muito grande a pagar pela chance de tornar-se imortal em uma pintura. Viu que ele a estava pintando ao lado do tal químico premiado, e começou a se perguntar se iria pedir algum tipo de pagamento no final.

- Vire o rosto em direção à janela.

Mais uma vez ela obedeceu, sem perguntar nada - o que não era absolutamente do seu feitio. Ficou olhando as pessoas que passavam, a placa sobre o tal caminho, imaginando que aquela rua já estava ali havia muitos séculos, uma rota que sobrevivera ao progresso, às mudanças do mundo, às próprias mudanças do homem. Talvez fosse um bom presságio, aquele quadro podia ter o mesmo destino, estar em um museu dali a quinhentos anos.

O homem começou a desenhar e, à medida que o trabalho progredia, ela perdeu a alegria inicial e começou a sentir-se insignificante. Quando entrara naquele bar, era uma mulher segura de si mesma, capaz de tomar uma decisão muito difícil - abandonar um trabalho que lhe dá dinheiro -para aceitar um desafio mais difícil ainda - dirigir uma fazenda na sua terra. Agora, parecia ter voltado a sensação de insegurança diante do mundo, coisa que uma prostituta jamais pode se dar ao luxo de sentir.

Terminou descobrindo a razão de seu desconforto: pela primeira vez em muitos meses, alguém não a olhava como um objeto, nem como uma mulher - mas como algo que não conseguia entender, embora a definição mais próxima fosse "ele está vendo a minha alma, meus medos, minha fragilidade, minha incapacidade de lutar com um mundo que eu finjo dominar, mas do qual não sei nada".

Ridículo, continuava delirando.

- Eu gostaria que...

- Por favor, não fale - disse o homem. - Estou vendo sua luz.

Nunca ninguém lhe dissera isso. "Estou vendo seus seios duros", "estou vendo suas coxas bem torneadas", "estou vendo esta beleza exótica dos trópicos", ou, no máximo,

"estou vendo que você quer sair desta vida, por que não me dá uma chance e monto um apartamento para você". Estes eram os comentários que estava acostumada a escutar, mas...

sua luz? Será que ele estava se referindo ao entardecer?

- Sua luz pessoal - ele completou, se dando conta de que ela não entendera nada.

 

Luz pessoal. Bem, ninguém podia estar mais longe da realidade do que aquele inocente pintor, que mesmo com seus possíveis trinta anos não tinha aprendido nada da vida. Como todos sabem, as mulheres amadurecem muito mais rápido que os homens, e Maria - embora não passasse noites em claro pensando em seus conflitos filosóficos - pelo menos uma coisa sabia: não possuía aquilo que o pintor chamava de "luz" e que ela interpretava como "um brilho especial". Era uma pessoa como todas as outras, sofria sua solidão em silêncio, tentava justificar tudo que fazia, fingia ser forte quando estava muito fraca, fingia ser fraca quando se sentia forte, renunciara a qualquer paixão em nome de um trabalho perigoso, mas agora já perto do final, tinha planos para o futuro e arrependimentos no passado - e uma pessoa assim não tem nada de "brilho especial". Aquilo devia ser apenas uma maneira de mantê- la calada e satisfeita para ficar ali, imóvel, fazendo papel de boba.

"Luz pessoal. Podia ter escolhido outra coisa, como ò seu perfil é lindo'."

Como entra luz em uma casa? Se as janelas estiverem abertas. Como entra luz em uma pessoa? Se a porta do amor estiver aberta. E, definitivamente, a sua não estava. Devia ser um péssimo pintor, não entendia nada.

- Acabei - disse ele, e começou a juntar seu material.

Maria não se mexeu. Tinha vontade de pedir para ver o quadro, mas ao mesmo tempo isso podia significar uma falta de educação, não confiar no que o outro tinha feito. A curiosidade, porém, falou mais alto. Ela pediu, ele concordou.

Desenhara apenas seu rosto; parecia-se com ela, mas se algum dia tivesse visto aquele quadro sem conhecer a modelo, diria que era alguém muito mais forte, cheia de uma "luz"

que ela não conseguia ver refletida no espelho.

- Meu nome é Ralf Hart. Se quiser, posso pagar-lhe outro drink?

- Não, obrigada.

Pelo visto, o encontro agora caminha da maneira tristemente prevista: o homem tenta seduzir a mulher.

- Por favor, mais dois drinks de anis - pediu, sem dar importância ao comentário de Maria.

O que tinha para fazer? Ler um aborrecido livro sobre administração de fazendas.

Caminhar, como já fizera centenas de vezes, pela margem do lago. Ou conversar com alguém que vira nela uma luz que desconhecia, justamente na data marcada no calendário para o começo do fim de sua "experiência".

- O que você faz?

Esta era a pergunta que não queria ouvir, que a fizera evitar muitos encontros quando, por uma razão ou por outra, alguém se aproximava dela (o que acontecia raramente na Suíça, dada a natureza discreta dos seus habitantes). Qual seria a resposta possível?

- Trabalho em uma boate.

Pronto. Um enorme peso saiu de suas costas - e ficou contente por tudo que aprendera desde que chegara na Suíça; perguntar (O que são os curdos? O que é o Caminho de Santiago?) e responder (trabalho em uma boate) sem importar-se com o que estão pensando.

- Acho que já a vi antes.

Maria sentiu que ele queria ir mais longe, e saboreou sua pequena vitória; o pintor que minutos atrás lhe dava ordens, parecendo absolutamente seguro do que queria, agora voltava a ser um homem como todos os outros, inseguro diante de uma mulher que nã o conhece.

- E esses livros?

Ela mostrou-os. Administração de fazendas. O homem pareceu ficar mais inseguro ainda.

- Trabalha com sexo?

Ele tinha arriscado. Será que ela se vestia como uma prostituta? De qualquer maneira, precisava ganhar tempo. Estava se examinando, aquilo começava a ser um jogo interessante, não tinha absolutamente nada a perder.

- Por que os homens só pensam nisso?

Ele tornou a colocar os livros na bolsa.

- Sexo e administração de fazendas. Duas coisas muito aborrecidas.

O quê? De repente, ela se sentia desafiada. Como podia falar tão mal de sua profissão? Bem, ele ainda não sabia em que ela trabalhava, estava apenas arriscando um palpite, mas não podia deixá-lo sem resposta.

- Pois eu penso que não há nada mais aborrecido do que a pintur a. Uma coisa parada, um movimento que foi interrompido, uma fotografia que jamais é fiel ao original. Uma coisa morta, pela qual ninguém se interessa mais, a não ser os pintores, gente que se julga importante, culta, e que não evoluiu como o resto do mundo. Já ouviu falar de Joan Miró?

Eu nunca ouvi, a não ser por um árabe em um restaurante, e isso não mudou absolutamente nada em minha vida.

Não sabia se tinha ido longe demais, porque os drinks chegaram e a conversa foi interrompida. Os dois ficaram sem dizer palavra por algum tempo. Maria pensou que já estava na hora de ir, e talvez Ralf Hart tivesse pensado a mesma coisa. Mas ali ainda estavam dois copos cheios daquela bebida horrorosa, e isso era um pretexto para continuarem juntos.

- Por que o livro sobre fazendas?

- O que você quer dizer?

- Já estive na Rue de Berne. Depois que você me disse onde trabalhava, me lembrei que já a vi antes: naquela boate cara. Entretanto, enquanto a pintava, não me dei conta: sua

"luz" estava muito forte.

Maria sentiu que o chão fugia dos seus pés. Pela primeira vez sentiu vergonha do que fazia, embora não tivesse a menor razão para isso, trabalhava para sustentar a si mesma e a sua família. Ele é quem devia sentir vergonha de ir à Rue de Berne; de um momento para o outro, todo aquele possível encanto havia desaparecido.

- Escute, Sr. Hart, embora eu seja brasileira, moro há nove meses na Suíça. E aprendi que os suíços são discretos porque vivem em um país muito pequeno, quase todos se conhecem, como acabamos de ver, razão pe la qual ninguém pergunta pela vida do outro.

Seu comentário foi impróprio e muito indelicado, mas se seu objetivo foi me humilhar para sentir-se mais à vontade, o senhor perdeu seu tempo. Obrigada pelo licor de anis, que é horroroso, mas que vou tomar até o final. E vou fumar um cigarro depois. E finalmente, vou levantar e irei embora. Mas o senhor pode sair neste momento, já que não é bom para pintores famosos sentarem à mesma mesa com uma prostituta. Porque é isso que sou, sabe?

Uma prostituta. Sem nenhuma culpa, dos pés à cabeça, de alto a baixo, uma prostituta. E

esta é a minha virtude: não enganar nem a mim, nem ao senhor. Porque não vale a pena, o senhor não merece uma mentira. Imagine se o químico famoso, ali no outro lado do restaurante, descobrir quem sou?

Ela começou a levantar a voz.

- Uma prostituta! E sabe o que mais? Isso me deixa livre, saber que vou embora desta maldita terra daqui a exatos noventa dias, cheia de dinheiro, muito mais culta, capaz de escolher um bom vinho, com a bolsa recheada de fotos que tirei na neve, e entendendo a natureza dos homens!

A moça do bar escutava, assustada. O químico parecia não prestar atenção. Mas talvez fosse o álcool, talvez a sensação de que em breve seria de novo uma mulher do interior, talvez a grande alegria de poder dizer em que trabalhava, e rir das reações chocadas, dos olhares de crítica, dos gestos de escândalo.

- Entendeu bem, Sr. Hart? De alto a baixo, dos pés à cabeça, sou uma prostituta, e essa é a minha qualidade, minha virtude!

Ele não disse nada. E não se moveu. Maria sentiu sua confiança voltando.

- E o senhor é um pintor que não entende de seus modelos. Talvez o químico sentado ali, distraído, dormindo, seja na verdade um ferroviário. E todas as outras pessoas no seu quadro sejam sempre aquilo que não são. Se não fosse assim, jamais diria que podia ver uma "luz especial" em uma mulher que, como descobriu durante a pintura, NÃO PASSA DE UMA PROS-TI-TU-TA!

As palavras finais foram pronunciadas lentamente, em voz alta. O químico acordou, e a moça do bar trouxe a conta.

- Não tem nada a ver com a prostituta, mas com a mulher que você é. - Ralf ignorou a conta, e respondeu também pausadamente, mas em voz baixa. - Tem brilho. A luz que vem da força de vontade, de alguém que sacrifica coisas importantes, em nome de outras coisas que julga mais importantes ainda. Os olhos, esta luz se manifesta nos olhos.

Maria sentiu-se desarmada; ele não aceitara sua provocação. Quis acreditar que desejava seduzi-Ia, nada mais. Estava proibida de pensar - pelo menos pelos próximos noventa dias - que existem homens interessantes na face da terra.

- Você está vendo este licor de anis diante de você? - ele continuou. - Pois você vê apenas um licor de anis. Eu, entretanto, como preciso entrar no que faço, vejo a planta de onde nasceu, as tempestades que esta planta enfrentou, a mão que colheu os grãos, a viagem de navio de um outro continente até aqui, os cheiros e cores que esta planta, antes de ser colocada no álcool, deixou que a tocassem e que fizessem parte dela. Se algum dia eu pintasse esta cena, pintaria isso tudo, embora, ao ver o quadro, você acreditasse que estava diante de um simples copo de licor de anis.

"Da mesma maneira, enquanto você olhava a rua e pensava - porque sei que pensava -

no Caminho de Santiago, eu pintei sua infância, sua adolescência, seus sonhos desfeitos no passado, seus sonhos no futuro, sua vontade - que é o que mais me intriga. Quando você viu seu quadro..."

Maria abriu a guarda, sabendo que seria muito difícil fechá- la adiante.

- Eu vi esta luz... embora ali estivesse apenas uma mulher parecida com você.

De novo veio o silêncio constrangedor. Maria olhou o relógio.

- Preciso ir dentro de poucos minutos. Por que você disse que sexo é aborrecido?

- Você deve saber melhor do que eu.

- Eu sei porque trabalho nisso. Então faço a mesma coisa todos os dias. Mas você é um homem de trinta anos...

- Vinte e nove...

- ... Jovem, atraente, famoso, que devia ainda estar interessado nestas coisas, e não precisava ir à Rue de Berne para arranjar companhia.

- Precisava sim. Fui para a cama com algumas de suas colegas, não porque tivesse problemas para arranjar companhia. Meu problema é comigo mesmo.

Maria sentiu uma ponta de ciúme, e ficou apavorada. Entendia agora que realmente precisava ir.

- Era minha última tentativa. Agora desisti - disse Ralf, começando a juntar o material espalhado pelo chão.

- Você tem algum problema físico?

- Nenhum. Apenas desinteresse.

Não era possível.

- Pague a conta. Vamos caminhar. Na verdade, acho que muita gente sente a mesma coisa, e ninguém diz; é bom conversar com alguém tão sincero.

Saíram pelo Caminho de Santiago, era uma subida e uma descida que terminava no rio, que terminava no lago, que terminava nas montanhas, que terminava em um remoto lugar da Espanha. Passaram por gente que voltava do almoço, mães com seus carrinhos de bebê, turistas que tiravam fotos do belo jato de água no meio do lago, mulheres muçulmanas com a cabeça coberta por um lenço, rapazes e moças fazendo jogging, todos peregrinos em busca desta cidade mitológica, Santiago de Compostela, que talvez nem mesmo existisse, fosse uma lenda na qual as pessoas precisam acreditar para dar um sentido a suas vidas. No caminho percorrido por tanta gente, há tanto tempo, também andavam aquele homem de cabelos longos carregando uma pesada sacola cheia de pincéis, tintas, telas, lápis, e a moça um pouco mais jovem, com uma bolsa cheia de livros sobre administração de fazendas. A nenhum dos dois ocorreu perguntar por que faziam aquela peregrinação juntos, era a coisa mais normal do mundo, ele sabia tudo sobre ela, embora ela nada soubesse sobre ele.

E por causa disso, resolveu perguntar - agora perguntava tudo. No começo ele fez o gênero modesto, mas ela sabia como conseguir qualquer coisa de um homem, e ele terminou conta ndo que tinha sido casado duas vezes (recorde para vinte e nove anos!), viajado muito, conhecido reis, atores famosos, festas inesquecíveis. Nascera em Genève, morara em Madri, Amsterdam, New York, e numa cidade no Sul da França, chamada Tarbes, que não estava em nenhum circuito turístico importante, mas que ele adorava por causa da proximidade das montanhas e do calor no coração de seus habitantes. Seu talento fora descoberto quando tinha vinte anos, quando um grande negociante de arte fora comer, por acaso, em um restaurante japonês em sua cidade natal - decorado com seus trabalhos.

Ganhara muito dinheiro, era jovem e saudável, podia fazer qualquer coisa, ir para qualquer lugar, encontrar-se com quem desejasse, já vivera todos os prazeres que um homem pode viver, fazia o que gostava, e, no entanto, apesar de tudo aquilo, fama, dinheiro, mulheres, viagens, era um homem infeliz, que tinha apenas uma alegria na vida: o trabalho.

- As mulheres o fizeram sofrer? - perguntou ela, logo se dando conta de que era uma pergunta idiota, provavelmente escrita em um manual sobre "Todas as coisas que as mulheres devem saber para conquistar um homem".

- Nunca me fizeram sofrer. Fui muito feliz em cada um de meus casamentos. Fui traído e traí como qualquer casal normal. Entretanto, depois de passado algum tempo, não me interessava mais o sexo. Continuava amando, sentindo falta da companhia, mas o sexo... por que estamos falando de sexo?

- Porque, como você mesmo disse, eu sou uma prostituta.

- Minha vida não tem grande interesse. Um artista que conseguiu fazer sucesso ainda jovem, o que é raro, e em pintura, o que é raríssimo. Que hoje em dia pode pintar qualquer tipo de quadro, e valera .im bom dinheiro, embora os críticos fiquem furiosos, achando que só eles sabem o que é "arte". Uma pessoa que todos acham ter resposta para tudo, e quanto mais calado fico, mais inteligente me consideram.

Ele continuou a contar sua vida: todas as semanas era convidado para alguma coisa, em algum lugar do mundo. Tinha uma agente que vivia em Ba rcelona - sabia onde era?

Sim, Maria sabia, era na Espanha. A tal agente se ocupava de tudo que se referia a dinheiro, convites, exposições, mas jamais o pressionava para fazer o que não tivesse vontade, já que, depois de muitos anos de trabalho, tinham conseguido uma certa estabilidade no mercado.

- É uma história interessante? - sua voz denotava um pouco de insegurança.

- Eu diria que é uma história muito diferente. Muita gente gostaria de estar na sua pele.

Ralf quis saber de Maria.

- Eu sou três, dependendo da pessoa que me procura. A Menina Ingênua, que fica olhando o homem com admiração, e finge estar impressionada por suas histórias de poder e de glória. A Mulher Fatal, que logo ataca aqueles que se sentem mais inseguros, e ao agir assim, tomando o co ntrole da situação, os deixa mais à vontade, porque eles não precisam se preocupar com mais nada.

"E, finalmente, a Mãe Compreensiva, que cuida dos que estão precisando de conselhos e escuta, com um ar de quem compreende tudo, histórias que estão entrando por um ouvido e saindo pelo outro. Qual das três você quer conhecer?"

- Você.

Maria contou tudo, porque precisava contar - era a primeira vez que fazia isso, desde que saíra do Brasil. Ao final, descobriu que, mesmo com seu emprego não muito convencional, nada acontecera de muito emocionante além da semana no Rio, e do primeiro mês na Suíça. Era casa, trabalho, casa, trabalho e nada mais.

Quando terminou, estavam de novo sentados em um bar desta vez do outro lado da cidade, longe do Caminho de Santiago, cada qual pensando no que o destino havia reservado para o outro.

- Está faltando alguma coisa? - perguntou ela.

- Como dizer "até logo".

Sim. Porque não tinha sido uma tarde como todas as outras. Ela sentia-se angustiada, tensa, por ter aberto uma porta e nã o saber como fechá- la.

- Quando poderei ver a tela?

Ralf lhe estendeu o cartão de sua agente em Barcelona.

- Telefone para ela daqui a seis meses, se ainda estiver na Europa. "As faces de Genève", gente famosa e gente anônima, será exposta pela primeira ve z em uma galeria em Berlim. Depois irá fazer um tour pela Europa.

Maria lembrou-se do calendário, dos noventa dias que faltavam, de tudo que qualquer relação, qualquer laço, poderia significar de perigoso.

"O que é mais importante nesta vida? Viver ou fingir que vivi? Arriscar agora, dizer que foi a tarde mais bela que passei nesta cidade? Agradecer porque ele me escutou sem críticas e sem comentários? Ou simplesmente vestir a couraça da mulher com força de vontade, com luz especial, e partir sem nenhum comentário?"

Enquanto andavam pelo Caminho de Santiago, e à medida que escutava a si mesma contando sua vida, ela fora uma mulher feliz. Podia contentar-se com isso - já era um grande presente da vida.

- Vou procurá- la - disse Ralf Hart.

- Não faça isso. Viajo em breve para o Brasil. Não temos mais nada a acrescentar um ao outro.

- Vou procurá- la como um cliente.

- Isso será uma humilhação para mim.

- Vou procurá- la para que me salve.

Ele fizera aquele comentário no início, sobre o desinteresse por sexo. Quis dizer que sentia a mesma coisa, mas controlou-se - tinha ido longe demais em suas negativas, era mais inteligente ficar quieta.

Que coisa patética. Mais uma vez estava ali com um menino, que desta vez não lhe pedia um lápis, mas um pouco de companhia. Olho u para o seu passado e, pela primeira vez, perdoou a si mesma: a culpa não fora dela, mas do garoto inseguro, que havia desistido na primeira tentativa. Eram crianças, e as crianças agem assim - nem ela nem o menino estavam errados, e isso lhe deu um grande alívio, sentiu-se melhor, não traíra sua primeira oportunidade na vida. Todos fazem isso, é parte da iniciação do ser humano em busca de sua outra parte, coisas assim acontecem.


Date: 2015-12-17; view: 877


<== previous page | next page ==>
Agradecimentos especiais a Klaus. 5 page | Agradecimentos especiais a Klaus. 7 page
doclecture.net - lectures - 2014-2024 year. Copyright infringement or personal data (0.017 sec.)