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Agradecimentos especiais a Klaus. 4 page

Resolveu que, pela primeira vez em muitos anos, ia dedicar o dia inteiro a pensar em si mesma. Até então vivera sempre preocupada com os outros: a mãe, os colegas de escola, o pai, os funcionários da agência de modelos, o professor de francês, o garçom, a bibliotecária, o que as pessoas na rua - que nunca tinha visto antes - estavam pensando. Na verdade, ninguém estava pensando em nada, muito menos nela, uma pobre estrangeira que, se desaparecesse amanhã, nem mesmo a polícia daria pela falta.

Bastava. Saiu cedo, tomou o café da manhã no lugar de sempre, caminhou um pouco em torno do lago, viu uma manifestação de exilados. Urra mulher, com um pequeno cachorro, comentou que eram curdos, e, mais uma vez, em vez de fingir que sabia a resposta para mostrar que era mais culta e inteligente do que pensavam, ela perguntou:

- De onde vêm os curdos?

A mulher, para sua surpresa, não soube responder. É assim o mundo: falam como se conhecessem tudo, e se você ousa perguntar, não sabem nada. Entrou em um cybercafé e descobriu na internet que as curdos vinham do Curdistão, um país inexistente, hoje dividido entre a Turquia e o Iraque. Voltou para o lugar onde estava, tentando encontrar a mulher com o cachorro, mas ela já havia partido, talvez porque o animal não tivera agüentado ficar meia hora vendo um bando de seres humanos com faixas, lenços, músicas, e gritos estranhos.

"Isso sou eu. Ou melhor, isso era eu: uma pessoa que fingia saber tudo, escondida em meu silêncio, até que aquele árabe me irritou tanto que tive coragem de dizer que só sabia a diferença entre refrigerantes. Ele ficou chocado? Mudou de id éia a meu respeito? Nada!

Deve ter achado fantástica a minha espontaneidade. Sempre saí perdendo quando quis parecer mais esperta do que sou: chega!"

Lembrou-se da agência de modelos. Será que sabiam o que queria o árabe - e neste caso mais uma vez Maria tinha bancado a ingênua - ou tinham realmente pensado que ele era capaz de arranjar um trabalho em seu país?

Fosse o que fosse, Maria se sentia menos só naquela manhã cinzenta de Genève, com a temperatura quase chegando próximo a zero, os curdos se manifestando, os bondes chegando no horário em cada parada, as lojas recolocando jóias nas vitrines, os bancos abrindo, os mendigos dormindo, os suíços indo para o trabalho. Estava menos só porque ao seu lado havia uma outra mulher, talvez invisível para os que passavam. Jamais tinha notado sua presença, mas ela estava ali.

Sorriu para a mulher invisível ao seu lado, que se parecia com a Virgem Maria, a mãe de Jesus. A mulher sorriu de volta, disse que tomasse cuidado, pois as coisas não eram tão simples como estava pensando. Maria não deu importância ao conselho, respondeu que era uma pessoa adulta, responsável por suas decisões, e não podia acreditar que havia uma conspiração cósmica contra ela. Aprendera que existe gente disposta a pagar mil francos suíços por uma noite, por meia hora entre suas pernas, e tudo que precisaria decidir, nos próximos dias, era se pegava os mil francos suíços que agora tinha em casa, comprava uma passagem de avião e voltava para a cidade onde nascera. Ou se ficava mais um pouco, o suficiente para comprar uma casa para os pais, belos vestidos e passagens para lugares que sonhara visitar um dia.



A mulher invisível ao seu lado tornou a insistir que as coisas não eram tão simples assim. Maria, embora contente com a companhia inesperada, pediu que não interrompesse seus pensamentos, a vida era mesmo mais complexa do que pensava.

Voltou a analisar, desta vez com mais cuidado, a possibilidade de retornar ao Brasil.

Suas amigas de colégio, que nunca tinham saído de lá, iriam logo comentar que fora mandada embora do emprego, que jamais tivera talento para ser uma estrela internacional.

Sua mãe ficaria triste porque nunca tinha recebido a mesada prometida - embora Maria, em suas cartas, afirmasse que o correio estava roubando o dinheiro. Seu pai a olharia o resto da vida com aquela expressão de "eu sabia", ela voltaria a trabalhar na loja de tecidos, se casaria com o dono, depois de ter viajado de avião, comido queijo suíço na Suíça, aprendido francês e pisado na neve.

Por outro lado, existiam os drinks de mil francos suíços. Talvez não durasse muito tempo - afinal, a beleza muda rápido como o vento -, e em um ano tivesse dinheiro para recuperar tudo e voltar ao mundo, desta vez ditando ela mesma as regras do jogo. Seu único problema concreto era que não sabia o que fazer, como começar. Em seus tempos na boate familiar, uma meça mencionara um lugar chamado Rue de Berne - aliás, fora um dos seus primeiros comentários, antes mesmo de mostrar onde devia deixar as malas.

Foi até um dos grandes painéis em que se encontravam vários lugares de Genève, aquela cidade tão gentil com os turistas, que não gostava de vê-los perdidos - e, para evitar isso, esses painéis tinham anúncios de um lado e mapas do outro.

Um homem estava ali, e ela perguntou se ele sabia onde ficava a Rue de Berne. Ele a olhou intrigado, e perguntou se era exatamente isso que estava procurando, ou se queria saber onde ficava a estrada que ia até Berne, a capital da Suíça.

- Não - respondeu Maria -, quero a tal rua que fica aqui mesmo.

O homem olhou-a de alto a baixo e afastou-se sem dizer uma palavra, certo de que estava sendo filmado para um daqueles programas de TV, em que a grande alegria do público é ver como todos podem parecer ridículos. Maria ficou quinze minutos ali parada -

afinal a cidade era pequena - e terminou encontrando o local.

Sua amiga invisível, que tinha ficado calada enquanto ela se concentrava no mapa, agora tentava argumentar; não era uma questão de moral, mas de entrar em um caminho sem volta.

Maria respondeu que, se fosse capaz de ter dinheiro para voltar da Suíça, seria capaz de sair de qualquer situação. Além do mais, nenhuma daquelas pessoas com as quais cruzava no seu passeio tinha escolhido o que desejava fazer. Essa era a realidade da vida.

"Estamos em um vale de lágrimas", disse à amiga invisível. "Podemos ter muitos sonhos, mas a vida é dura, implacável, triste. O que você quer me dizer? Que irão me condenar? Ninguém saberá, e isso será apenas um período de minha vida."

Com um sorriso doce, mas triste, a amiga invisível desapa

receu.

Foi até o parque de diversões, comprou uma entrada para a montanha-russa, gritou como todos os outros, mas entendendo que não havia perigo, era apenas um brinquedo.

Comeu em um restaurante japonês, mesmo sem entender direito o que comia sabia apenas que era muito caro -, e agora estava disposta a se dar todos os luxos. Estava alegre, não precisava esperar por um telefonema, ou contar os centavos que gastava.

No final do dia, ligou para a agência, disse que o encontro fora muito bom, e que estava agradecida. Se fossem sérios, per

guntariam sobre as fotos. Se fossem agenciadores de mulheres, arranjariam novos encontros.

Atravessou a ponte, voltou para o pequeno quarto, resolveu que não compraria de jeito nenhum uma televisão, mesmo tendo dinheiro e muitos planos pela frente: precisava pensar, usar todo o seu tempo para pensar.

 

Do diário de Maria naquela noite (com uma anotação na margem dizendo: "não estou muito convencida"):

Descobri por que um homem paga por uma mulher: ele quer ser feliz.

Não vai pagar mil francos apenas para ter um orgasmo. Ele quer ser feliz. Eu também quero, todo mundo quer, e ninguém consegue. O que tenho a perder se resolver me transformar por algum tempo em uma... a palavra é difícil de pensar e escrever... mas vamos lá... o que posso perder se resolver ser uma prostituta por algum tempo?

A honra. A dignidade. O respeito por mim. Pensando bem, nunca tive nenhuma destas três coisas. Não pedi para nascer, não consegui alguém que me amasse, sempre tomei as decisões erradas. Agora estou deixando que a vida decida por mim.

A agência telefonou no dia seguinte, perguntou sobre as fotos e para quando seria o desfile, já que ganhavam uma comissão sobre cada trabalho. Maria disse que o árabe devia entrarem contato com eles, imediatamente deduzindo que não sabiam de nada.

Foi até a biblioteca e pediu livros sobre sexo. Se estava considerando seriamente a possibilidade de trabalhar - por um ano apenas, ela havia prometido a si mesma - em algo sobre o qual não conhecia nada, a primeira coisa que precisava aprender era como agir, como dar prazer, e como receber dinheiro em troca.

Para sua decepção, a bibliotecária disse que tinham apenas uns poucos tratados técnicos, já que o lugar era uma instituição do governo. Maria leu o índice de um dos tratados técnicos, e logo devolveu: não entendiam nada da felicidade, falavam apenas de ereção, penetração, impotência, precauções, coisas sem o menor sabor. Por um dado momento, chegou a considerar seriamente a possibilidade de levar "Considerações psicológicas sobre a frigidez da mulher", já que, no seu caso, só conseguia ter orgasmos através da masturbação, embora fosse muito agradável ser possuída e penetrada por um homem.

Mas não estava ali em busca de prazer, e sim de trabalho. Agradeceu à bibliotecária, passou em uma loja e fez seu primeiro investimento na possível carreira que se delineava

.no horizonte - roupas que considerava sexy o suficiente para despertar todo tipo de desejo.

Em seguida, foi ao lugar que havia descoberto no mapa. A Rue de Berne começava em uma igreja (coincidência, perto do restaurante japonês onde jantara no dia anterior!), transformava-se em vitrines vendendo relógios baratos, até que, em seu final, ficavam as boates de que havia escutado falar, todas fechadas àquela hora do dia. Tornou a passear em volta do lago, comprou - sem qualquer constrangimento - cinco revistas pornográficas para estudar o que eventualmente deveria fazer, esperou a noite, e dirigiu-se de novo ao lugar.

Ali, escolheu por acaso um bar com o sugestivo nome brasileiro de Copacabana.

Não tinha decidido nada, dizia para si mesma. Era apenas uma experiência. Nunca se sentira tão bem e tão livre em todo 0 tempo que passara na Suíça.

- Está procurando emprego - disse o dono, que lavava copos detrás de um balcão, sem mesmo colocar um ponto de interrogação na frase. O lugar consistia em uma série de mesas, um canto com uma espécie de pista de dança e alguns sofás encostados nas paredes.

- Nada feito. Para trabalhar aqui, já que obedecemos à lei, é preciso ter pelo menos uma carteira de trabalho.

Maria mostrou a sua, e o homem pareceu melhorar de humor.

- Tem experiência?

Ela não sabia o que dizer: se dissesse que sim, ele iria perguntar onde trabalhara antes.

Se negasse, ele seria capaz de recusá- la.

- Estou escrevendo um livro.

A idéia saíra do nada, como se uma voz invisível a estivesse ajudando naquele momento. Notou que o homem sabia que era uma mentira, e fingia que acreditava.

- Antes de tomar qualquer decisão, fale com algumas das moças. Temos pelo me nos seis brasileiras, e você poderá saber tudo o que a aguarda.

Maria quis dizer que não precisava de conselhos de ninguém, que tampouco tinha tomado uma decisão, mas o homem já se deslocara para o outro lado do bar, deixando-a sozinha, sem lhe oferecer sequer um copo de água.

As moças foram chegando, o dono identificou algumas brasileiras e pediu que conversassem com a recém-chegada. Nenhuma delas parecia disposta a obedecer e Maria deduziu que tinham medo da concorrência. O som da boate foi ligado, e algumas canções brasileiras começaram a tocar (afinal, o lugar chamava-se Copacabana). Entraram moças de traços asiáticos, outras que pareciam ter saído das montanhas nevadas e românticas em torno de Genève. Finalmente, depois de quase duas horas de espera, muita sede, alguns cigarros, uma sensação cada vez mais profunda de que estava tomando uma decisão errada, uma repetição mental infindável da frase "o que estou fazendo aqui?", e uma irritação com a total ausência de interesse tanto do proprietário como das meninas, uma das brasileiras terminou se aproximando.

- Por que escolheu este lugar?

Maria podia voltar para a história do livro, ou fazer o que fizera com relação aos curdos e a Joan Miró: dizer a verdade.

- Pelo nome. Não sei por onde começar, e tampouco sei se quero começar.

A moça pareceu ter ficado surpresa com o comentário direto e franco. Bebeu um trago de algo que parecia uísque, escutou uma música brasileira que tocava, fez comentários sobre as saudades de sua terra, disse que o movimento ia ser fraco naquela noite porque tinham cancelado um grande congresso internacional que acontecia nas proximidades de Genève. No final, quando notou que Maria não ia embora, disse:

- É muito simples, você deve obedecer a três regras. A primeira: não se apaixone por ninguém com quem trabalha ou com quem faz amor. A segunda: não acredite em promessas, e cobre sempre adiantado. A terceira: não use drogas.

Fez uma pausa.

- E comece logo. Se voltar hoje para casa sem ter arranjado um homem, irá pensar duas vezes, e não terá coragem de voltar.

Maria tinha ido preparada apenas para uma consulta, uma informação sobre suas possibilidades de um trabalho provisório, mas percebeu que estava diante daquele sentimento que faz com que as pessoas tomem uma decisão rapidamente -desespero!

- Está bem. Começo hoje.

Não confessou que havia começado ontem. A mulher foi até o dono do bar, a quem chamou de Milan, e este veio conversar com Maria.

- Está com roupa de baixo bonita?

Ninguém lhe fizera essa pergunta antes. Nem seus namorados, nem o árabe, nem suas amigas, muito menos um estranho. Mas então era assim a vida naquele lugar: direto ao assunto.

- Estou com uma calcinha azul-clara.

"E sem sutiã", acrescentou, provocativa. Mas tudo que conseguiu foi uma reprimenda:

- Amanhã, use calcinha preta, sutiã e meias compridas. Faz parte do ritual tirar o máximo de roupas possível.

Sem perder mais tempo, e agora com a certeza de que estava diante de uma iniciante, Milan ensinou- lhe o resto do ritual: o Copacabana devia ser um lugar agradável, e não um prostíbulo. Os homens entravam naquela boate querendo acreditar que iriam encontrar uma mulher desacompanhada, sozinha. Se alguém se aproximasse de sua mesa, e não fosse interrompido no percurso (porque, além de tudo, existia o conceito de "cliente exclusivo de certas meninas"), com toda certeza convidaria: "Quer beber alguma coisa?"

Ao que Maria podia responder sim ou não. Era livre para decidir sua companhia, embora fosse desaconselhável dizer "não" mais de uma vez por noite. Caso respondesse afirmativamente, pediria um coquetel de frutas, que (por casualidade) era a bebida mais cara da lista. Nada de álcool, nada de deixar que o cliente escolhesse por ela.

Depois, devia aceitar um eventual convite para dançar. A maioria dos freqüentadores era conhecida e, exceto pelos "clientes exclusivos", sobre os quais não entrou em detalhes, ninguém representava qualquer risco. A polícia e o Ministério da Saúde exigiam exames de sangue mensais, para ver se não eram portadoras de doenças sexualmente transmissíveis. O

uso do preservativo era obrigatório, embora não tivessem como vigiar se esta norma estava sendo ou não cumprida. Não podiam jamais criar um escândalo - Milan era casado, pai de família, preocupado com sua reputação e o bom nome de sua boate.

Continuou explicando o ritual: depois de dançar, voltavam para a mesa, e o cliente, como se estivesse dizendo algo inesperado, a convidava para ir a um hotel com ele. O preço normal era trezentos e cinqüenta francos, dos quais cinqüenta francos ficariam para Milan, a título de aluguel da mesa (um artifício legal para evitar, no futuro, complicações jurídicas e acusação de explorar o sexo com fins lucrativos).

Maria ainda tentou argumentar:

- Mas eu ganhei mil francos por...

O dono fez menção de afastar-se, mas a brasileira, que assistia à conversa, interferiu:

- Ela está brincando.

E, virando-se para Maria, disse em bom e sonoro português:

- Este é o lugar mais caro de Genève (ali a cidade se chamava Genève, e não Genebra). Nunca repita isso. Ele conhece o preço do mercado, e sabe que ninguém vai para a cama por mil francos, exceto, se tiver sorte e competência, com os "clientes especiais".

 

Os olhos de Milan, que mais tarde Maria descobriria ser um iugoslavo que ali vivia fazia vinte anos, não deixavam margem a qualq uer dúvida:

- O preço é trezentos e cinqüenta francos.

- Sim, o preço é este - repetiu uma humilhada Maria.

Primeiro, ele pergunta qual a cor de sua roupa de baixo. Em seguida, decide o preço do seu corpo.

Mas não tinha tempo para pensar, o homem continuava dando instruções: não devia aceitar convites para ir a casas ou a hotéis que não fossem cinco estrelas. Se o cliente não tivesse aonde levá-la, ela iria a um hotel localizado a cinco quadras dali, mas sempre de táxi, para evitar que outras mulheres de outras boates na Rue de Berne se acostumassem com seu rosto. Maria não acreditou nisso, e pensou que a verdadeira razão fosse receber um convite para trabalhar em melhores condições, em outra boate. Mas guardou seus pensamentos para si mesma, já lhe bastava a discussão sobre o preço.

- Repito mais uma vez: assim como os policiais no cinema, jamais beba enquanto trabalha. Vou deixá- la, o movimento começa daqui a pouco.

- Agradeça a ele - disse, em português, a brasileira.

Maria agradeceu. O homem sorriu, mas ainda não tinha terminado sua lista de recomendações:

- Esqueci algo: o tempo entre o pedido de bebida e o momento de sair não deve ultrapassar, de maneira alguma, quarenta e cinco minutos. Na Suíça, com relógios por todos os lados, até iugoslavos e brasileiros aprendem a respeitar o horário. Lembre-se de que eu alimento meus filhos com sua comissão.

Estava lembrado.

Deu-lhe um copo de água mineral com gás e limão - podia facilmente passar por gim-tônica - e pediu que aguardasse.

Aos poucos, a boate começou a encher. Os homens entravam, olhavam em volta, sentavam-se sozinhos, e logo aparecia alguém da casa, como se fosse uma festa e todos se conhecessem havia muito tempo, e agora estivessem aproveitando para divertir-se um pouco depois de um longo dia de trabalho. A cada homem que arranjava uma companhia, Maria suspirava, aliviada, embora já estivesse se sentindo muito melhor. Talvez porque fosse a Suíça, talvez porque, cedo ou tarde, encontraria aventura, dinheiro, ou um marido como sempre sonhara. Talvez porque - agora se dava conta - era a primeira vez em muitas semanas que saía de noite e ia para um lugar onde tocavam música e onde podia, de vez em quando, escutar alguém falando português. Divertia-se com as meninas a sua volta, rindo, tomando coquetel de frutas, conversando alegremente.

Nenhuma delas viera cumprimentá- la ou desejar- lhe sucesso em sua nova profissão, mas isso era normal, afinal de contas era uma concorrente, adversária, disputando o mesmo troféu. Em vez de ficar deprimida, sentiu orgulho - estava lutando, combatendo, não era uma pessoa desamparada. Podia, assim que quisesse, abrir a porta e ir embora para sempre, mas iria sempre se lembrar que tivera coragem de chegar até ali, negociar e discutir sobre coisas nas quais, em nenhum momento da sua vida, ousara pensar. Não era uma vítima do destino, repetia a cada minuto: estava correndo seus riscos, indo além dos seus limites, vivendo coisas que um dia, no silêncio do seu coração, nos momentos cheios de tédio da velhice, poderia lembrar com certa dose de saudade - por mais absurdo que isso pudesse parecer.

Tinha certeza de que ninguém ia se aproximar dela, e amanhã tudo não passaria de uma espécie de sonho louco, que ela jamais ousaria repetir. Acabara de se dar conta de que mil francos por uma no ite só acontece uma vez, e seria mais seguro comprar a passagem de volta para o Brasil. Para que o tempo passasse mais rápido, começou a calcular quanto ganharia cada uma daquelas moças: se saíssem três vezes por dia, conseguiriam a cada quatro horas de trabalho o equivalente a dois meses de seu salário na loja de tecidos.

Tudo isso? Bem, ela ganhara mil francos em uma noite, mas talvez fosse sorte de principiante. De qualquer maneira, os rendimentos de uma prostituta normal eram mais, muito mais, do que poderia conseguir dando aulas de francês na sua terra. Tudo isso tendo como único esforço ficar em um bar durante algum tempo, dançar, abrir as pernas, e ponto final. Nem mesmo conversar era necessário.

Dinheiro podia ser um bom motivo, continuou pensando. Mas era tudo? Ou as pessoas que estavam ali, clientes e mulheres, conseguiam se divertir de alguma maneira?

Será que o mundo era bem diferente do que lhe haviam contado na escola? Se usasse preservativo, não haveria nenhum risco, nem mesmo o de ser reconhecida por alguém de sua terra. Ninguém visita Genève, exceto - como lhe disseram uma vez no curso - os que gostavam de freqüentar bancos. Mas os brasileiros, em sua maioria, gostam mesmo é de freqüentar lojas, de preferência em Miami ou Paris. Trezentos francos por dia, cinco dias por semana.

Uma fortuna! O que aquelas meninas continuavam a fazer ali, se em um mês tinham dinheiro suficiente para voltar para comprar uma casa para suas mães? Será que estavam trabalhando havia pouco tempo?

Ou - e Maria teve medo da própria pergunta - ou será que era bom?

De novo sentiu vontade de beber - o champanha ajudara muito no dia anterior.

- Aceita um drink?

Diante dela, um homem de aproximadamente trinta anos, uniforme de uma companhia aérea.

O mundo entrou em câmara lenta, e Maria experimentou a sensação de sair do seu corpo e observar-se do lado de fora. Morrendo de vergonha, mas lutando para controlar o rubor de sua face, fez que sim com a cabeça, sorriu, e entendeu que a partir daquele minuto sua vida tinha mudado para sempre.

Coquetel de frutas, conversa, o que está fazendo aqui, está frio, não é verdade? Gosto desta música, pois eu prefiro Abba, os suíços são frios, você é do Brasil? Conte- me sobre a sua terra. Tem carnaval. As brasileiras são lindas, você sabia?

Sorr ir e aceitar o elogio, fazer talvez um ar meio tímido. Dançar de novo, mas prestando atenção ao olhar de Milan, que às vezes coça a cabeça e aponta para o relógio em seu pulso. Cheiro de perfume do homem, entende rápido que precisa se acostumar com cheiros. Pelo menos este é de perfume. Dançam agarrados. Mais um coquetel de frutas, o tempo está passando. Ele não tinha dito que eram quarenta e cinco minutos? Olha o relógio, ele pergunta se está esperando alguém, ela diz que dali a uma hora virão alguns amigos, ele a convida para sair. Hotel, trezentos e cinqüenta francos, ducha após o sexo (o homem comentou, intrigado, que ninguém tinha feito isso antes). Não é Maria, é alguma outra pessoa que está em seu corpo, que não sente nada, apenas cumpre mecanicamente uma espécie de ritual. É uma atriz. Milan tinha ensinado tudo, menos como se despedir do cliente. Ela agradece, ele também está sem jeito, e com sono.

Reluta, quer voltar para casa, mas deve ir à boate entregar os cinqüenta francos, e então novo homem, no vo coquetel, perguntas sobre o Brasil, hotel, ducha de novo (desta vez sem comentários). Retorna ao bar, o dono pega sua comissão, diz que pode ir embora, o movimento está fraco naquele dia. Não toma um táxi, cruza toda a Rue de Berne a pé, olhando as outras boates, as vitrines com relógios, a igreja na esquina (fechada, sempre fechada...). Ninguém retorna o olhar - como sempre.

Caminha pelo frio. Não sente a temperatura, não chora, não pensa no dinheiro que ganhou, está em uma espécie de transe. Algumas pessoas nasceram para encarar a vida sozinhas. Isso não é bom nem mau, apenas a vida. Maria é uma destas pessoas.

Começa a fazer força para refletir sobre o que aconteceu. Começou hoje e entretanto já se considera uma profissional, parece que foi há muito tempo, que fez isso toda a sua vida. Tem um estranho amor por si mesma, está contente por não ter fugido. Precisa agora decidir se vai seguir adiante. Se seguir, irá ser a melhor - coisa que nunca foi, em momento algum.

Mas a vida estava lhe ensinando - muito rápido - que só os fortes sobrevivem. Para ser forte, é preciso ser mesmo o melhor; não há alternativa.

 

Do diário de Maria, uma semana depois:

Eu não sou um corpo que tem uma alma, sou uma alma que tem uma parte visível chamada corpo. Durante todos estes dias, ao contrário do que podia imaginar, esta alma esteve muito mais presente. Não me dizia nada, não me criticava, não sentia pena de mim: apenas me observava.

Hoje eu me dei conta do motivo por que isso acontecia: há muito tempo não penso em algo chamado amor. Parece que ele está fugindo de mim, como se não fosse mais importante, e não se sentisse bem-vindo. Mas, se não pensar em amor, não serei nada.

Quando voltei ao Copacabana, no segundo dia, já era vista com muito mais respeito -

pelo que entenda; muitas garotas aparecem por uma noite e não agüentam continuar. Quem vai adiante passa a ser uma espécie de aliada, de companheira - porque pode entender as dificuldades e as razões, ou melhor dizendo, a ausência de razões de se ter escolhido este tipo de vida.

Todas sonham com alguém que chegue e as descubra como verdadeira mulher, companheira, sensual, amiga. Mas todas sabem, desde o primeiro minuto de um novo encontro, que nada disso irá acontecer.

Preciso escrever sobre o amor. Preciso pensar, pensar, escrever e escrever sobre o amor - ou minha alma não suportará.


Date: 2015-12-17; view: 664


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