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Agradecimentos especiais a Klaus. 3 page

Como é que ela podia imaginar? Será que todo mundo buscava a mesma coisa? Ou será que Vivian podia ler os pensamentos alheios?

- Todas as meninas aqui buscam uma destas três coisas continuou Vivian, e Maria convenceu-se de que estava lendo seu pensamento. - Quanto à aventura, está muito frio para qualquer coisa, e além do mais o dinheiro não sobra para viagens. Quanto ao dinheiro, você terá que trabalhar quase um ano para pagar sua passagem de volta, além dos descontos da hospedagem e da comida.

- Mas...

- Já sei: não foi isso o combinado. Na verdade, foi você quem se esqueceu de perguntar, como aliás todo mundo esquece. Se tivesse mais cuidado, se lesse o contrato que assinou, saberia exatamente onde se meteu, porque os suíços não mentem, embora usem o silêncio para ajudar a si mesmos.

O chão fugia dos pés de Maria.

- Finalmente, quanto ao marido, cada menina que se casa significa um grande prejuízo econômico para Roger, de modo que estamos proibidas de conversar com os clientes. Se quiser alguma coisa neste sentido, terá que correr grandes riscos. Isso daqui não é um lugar onde as pessoas se encontram, como na Rue de Berne.

Rue de Berne?

- Os homens vêm aqui com suas mulheres, e os poucos turistas, assim que se dão conta do ambiente fa miliar, vão em busca de mulheres em outros lugares. Saiba dançar; se souber também cantar, seu salário aumentará, e a inveja das outras também, de modo que sugiro que não tente cantar.

"Sobretudo, não use o telefone. Vai gastar tudo que ainda tem por ganhar, e que será muito pouco."

- Mas ele me prometeu quinhentos dólares por semana!

- Você verá.

Do diário de Maria, em sua segunda semana na Suíça:

Fui até a boate, encontrei um "diretor de danças" de um país chamado Marrocos, e tive que aprender cada passo daquilo que ele - que jamais pisou no Brasil -acredita ser

"samba". Não tive nem tempo de descansar da longa viagem de avião; era sorrir e dançar -

logo na primeira noite. Somos seis meninas, nenhuma delas está feliz, e nenhuma sabe o que está fazendo aqui. Os clientes bebem e batem palmas, jogam beijos e fazem gestos pornográficos escondidos, mas não passa disso.

O salário foi pago ontem, apenas um décimo do que havíamos combinado - o resto, segundo o tal contrato, será usado para pagar minha passagem e minha estada. Pelos cálculos de Vivian, isso deve demorar um ano - ou seja, durante este período não tenho para onde fugir.

Mas será que vale a pena fugir? Acabei de chegar, ainda não conheço nada. Qual o problema de dançar durante sete noites por semana? Antes eu fazia isso por prazer, agora faço por dinheiro e fama; as pernas não reclamam, a única coisa difícil é manter o sorriso nos lábios.



Posso escolher entre ser uma vítima do mundo, ou uma aventureira em busca do seu tesouro. Tudo é uma questão de como vou encarar minha vida.

Maria escolheu ser uma aventureira em busca do tesouro deixou de lado os seus sentimentos, parou de chorar toda noite, esqueceu-se de quem era; descobriu que tinha força de vontade suficiente para fingir que tinha acabado de nascer, e portanto não precisava sentir saudades de ninguém. Os sentimentos podiam esperar, agora era preciso ganhar dinheiro, conhecer o país, e voltar vitoriosa para sua terra.

De resto, tudo a sua volta parecia o Brasil em geral, e sua cidade em particular: as mulheres falavam português, queixavam-se dos homens, conversavam alto, reclamavam dos horários, chegavam atrasadas à boate, desafiavam o patrão, achavamse as mais belas do mundo e contavam histórias dos seus príncipes encantados - que geralmente estavam muito longe, ou eram casados, ou não tinham dinheiro e viviam do trabalho delas. O ambiente, ao contrário do que tinha imaginado ao ver os folhetos de propaganda que Roger trazia consigo, era exatamente como Vivian descrevera: familiar. As meninas não podiam aceitar convites ou sair com fregueses, porque estavam registradas como "dançarinas de samba"

nas respectivas carteiras de trabalho. Se fossem flagradas recebendo um papel com telefone, ficavam quinze dias sem trabalhar. Maria, que esperava algo muito ma is movimentado e emocionante, foi aos poucos deixando-se dominar pela tristeza e pelo tédio.

Nos primeiros quinze dias, ela pouco deixou a pensão onde morava - principalmente quando descobriu que ninguém falava sua língua, mesmo que ela pronunciasse DE-VAGAR cada frase. Também ficou surpresa ao saber que, ao contrário do que acontecia em seu país, a cidade onde estava agora tinha dois nomes diferentes - Genève para os que viviam ali, e Genebra para as brasileiras.

Finalmente, durante as longas horas de tédio em seu pequeno quarto sem televisão, ela concluiu:

a) nunca chegaria a encontrar o que estava procurando, se não soubesse dizer o que pensava. Para isso, precisava aprender a língua local;

b) como todas as suas companheiras estavam também procurando a mesma coisa, ela precisava ser diferente. Para isso ainda não tinha uma solução ou um método.

Do diário de Maria, quatro semanas depois de desembarcar em Genève/Genebra: Já estou aqui há uma eternidade, não falo a língua, passo o dia escutando música no rádio, olhando o quarto, pensando no Brasil, torcendo para que chegue a hora de trabalhar e

- quando estou trabalhando - torcendo para que chegue a hora de voltar para a pensão. Ou seja, estou vivendo o futuro em vez do presente.

Um dia, num futuro remoto, terei minha passagem, poderei voltar para o Brasil, casar-me com o dono da loja de tecidos, escutar os comentários maldosos das amigas que nunca arriscaram e por isso só conseguem enxergar a derrota dos outros. Não, não posso voltar assim; prefiro atirar- me do avião quando ele estiver cruzando o oceano.

Como as janelas do avião não abrem (aliás, isso foi algo que nunca esperava; que pena não poder sentir o ar puro!), morro aqui mesmo. Mas antes de morrer, quero lutar pela vida. Se eu puder andar sozinha, vou até onde quero.

 

No dia seguinte matriculou-se imediatamente em um curso matutino de francês, onde conheceu gente de todos os credos, crenças e idades, homens com roupas coloridas e muitas correntes de ouro nos braços, mulheres sempre com um véu na cabeça, crianças que aprendiam mais rápido que os adultos - quando justamente devia ser o contrário, pois os adultos têm mais experiência. Ficava orgulhosa ao saber que todos conheciam seu país, o carnaval, o samba, o futebol, e a pessoa mais famosa do mundo, cha mada Pelê. No início ela quis ser simpática e procurou corrigir a pronúncia (é Pelé! Pelééé! ! !), mas depois de algum tempo desistiu, já que também a chamavam de Mariá, essa mania que os estrangeiros têm de mudar todos os nomes e ainda achar que estão certos.

Durante a tarde, para praticar o idioma, ensaiou seus primeiros passos por aquela cidade de dois nomes, descobriu um chocolate delicioso, um queijo que jamais havia comido, um gigantesco chafariz no meio do lago, a neve que os pés de nenhum dos habitantes de sua cidade tinham tocado, as cegonhas, os restaurantes com lareira (embora jamais tenha entrado em algum, via o fogo lá dentro, e aquilo lhe dava uma agradável sensação de bem-estar). Também ficou surpresa ao descobrir que nem todos os letreiros tinham propaganda de relógios, havia também bancos - embora não conseguisse entender por que existiam tantos bancos para tão poucos habitantes, e pudesse reparar que raramente via alguém no interior das agências, mas resolveu não perguntar nada.

Depois de três meses de autocontrole no trabalho, seu sangue brasileiro - sensual e sexual como todos no mundo pensavam - falou mais alto; ela se apaixonou por um árabe que estudava francês no mesmo curso. O caso durou três semanas até que, uma noite, ela resolveu deixar tudo de lado e visitar uma montanha perto de Genève. Quando chegou ao trabalho na tarde seguinte, Roger mandou que fosse ao seu escritório.

Assim que abriu a porta, foi sumariamente demitida, por dar mau exemplo às outras meninas que ali trabalhavam. Roger, histérico, disse que mais uma vez se decepcionava, que as mulheres brasileiras não eram confiáveis (ah, meu Deus, esta mania de generalizar tudo). De nada adiantou afirmar que tudo não passara de uma febre muito alta por causa da diferença de temperatura, o homem não se convenceu, e ainda reclamou que precisava voltar de novo ao Brasil para arranjar uma substituta, e que melhor teria sido fazer um show com música e bailarinas iugoslavas, que eram muito mais bonitas e mais responsáveis.

Maria, embora ainda jovem, não tinha nada de boba - principalmente depois que seu amante árabe lhe disse que na Suíça as leis trabalhistas são muito severas, e ela podia alegar que estava sendo usada para trabalho escravo, já que a boate ficava com grande parte do seu sa lário.

Voltou ao escritório de Roger, desta vez falando um francês razoável, que incluía em seu vocabulário a palavra "advogado". Saiu dali com alguns xingamentos, e cinco mil dólares de indenização - um dinheiro com que jamais havia sonhado, tudo por caus a daquela palavra mágica, "advogado". Agora podia namorar livremente o árabe, comprar alguns presentes, tirar umas fotos na neve, e voltar para casa com a vitória tão sonhada.

A primeira coisa que fez foi telefonar para uma vizinha da mãe e dizer que estava feliz, tinha uma linda carreira pela frente e ninguém em sua casa precisava ficar preocupado. Em seguida, como tinha um prazo para deixar o quarto de pensão que Roger lhe havia alugado, faltava apenas ir até o árabe; fazer juras de amor eterno, converter-se à sua religião, casar-se com ele - mesmo sendo obrigada a usar um daqueles lenços estranhos na cabeça; afinal de contas, todos ali sabiam que os árabes eram muito ricos, e isso bastava.

Mas o árabe, àquela altura, já estava longe - possivelmente na Arábia, um país que Maria não conhecia - e no fundo ela deu graças à Virgem Maria, porque não fora obrigada a trair sua religião. Agora, já falando francês o suficiente, com dinheiro para a passagem de volta, carteira de trabalho que a classificava como "dançarina de samba", um visto de permanência que ainda tinha validade, e sabendo que em último caso podia casar-se com um comerciante de tecidos, Maria resolveu fazer o que sabia que era capaz: ganhar dinheiro com sua beleza.

Ainda no Brasil, lera um livro sobre um pastor que, na busca de seu tesouro, encontra-se com várias dificuldades, e estas dificuldades o ajudam a conseguir o que deseja; era exatamente esse o seu caso. Tinha agora plena consciência de que fora despedida para encontrar-se com o seu verdadeiro destino - modelo e manequim.

Alugou um pequeno quarto (que não tinha televisão, pois era preciso economizar o máximo, até que conseguisse realmente ganhar muito dinheiro), e no dia seguinte começou a visitar agências. Em todas soube que precisava deixar fotos profissionais, mas, afinal de contas, era um investimento em sua carreira -todo sonho custa caro. Gastou uma considerável parte do dinheiro com um excelente fotógrafo, que conversava pouco e exigia muito: tinha um gigantesco guarda-roupa no seu estúdio,

e ela posou com vestidos sóbrios, extravagantes, e até mesmo com um biquíni do qual seu único conhecido no Rio de janeiro, intérprete/segurança e ex-empresário Maílson, iria morrer de orgulho. Pediu uma série de cópias extras, escreveu uma carta dizendo como estava feliz na Suíça, e enviou-a para a sua família. Iam achar que estava rica, com um guarda-roupa invejável, e que se havia transformado na filha mais ilustre de sua pequena cidade. Se tudo desse certo como pensava (já havia lido muitos livros de "pensamento positivo" e não tinha a menor dúvida de sua vitória), seria recebida com banda de música na volta, e daria um jeito de convencer o prefeito a inaugurar uma praça com o seu nome.

Comprou um telefone móvel, daqueles que utilizam cartão pré-pago (já que não tinha domicílio fixo) e, nos dias que se seguiram, ficou aguardando as chamadas para o trabalho.

Comia em restaurantes chineses (os mais baratos) e, para passar o tempo, estudava como uma louca.

Mas o tempo custava a passar, e o telefone não tocava. Para sua surpresa, ninguém mexia com ela quando passeava à beira do lago, exceto alguns traficantes de drogas que ficavam sempre no mesmo lugar, debaixo de uma das pontes que uniam o belo jardim antigo à parte mais nova da cidade. Começou a duvidar de sua beleza, até que uma das ex-companheiras de trabalho, com quem se encontrara por acaso em um café, disse que a culpa não era dela, mas dos suíços, que não gostam de incomodar ninguém, e dos estrangeiros, que têm medo de serem presos por "assédio sexual" - algo que tinham inventado para fazer as mulheres de todo o mundo se sentirem péssimas.

 

Do diário de Maria, numa noite em que não tinha coragem de sair, de viver, de continuar esperando pelo telefonema que não vinha:

Hoje passei diante de um parque de diversões. Como não posso ficar gastando dinheiro à toa, achei melhor observar as pessoas. Fiquei muito tempo parada diante da montanha-russa: via que a maioria das pessoas entrava ali em busca de emoção, mas quando começavam a andar, morriam de medo e pediam para que parassem os carros.

O que elas querem? Se escolheram a aventura, não deviam estar preparadas para ir até o final? Ou acham que seria mais inteligente não passar por estes sobe-e-desce, e ficar o tempo todo em um carrossel, girando no mesmo lugar?

No momento estou sozinha demais para pensarem amor, mas preciso me convencer de que isso vai passar, conseguirei meu emprego, e estou aqui porque escolhi este destino.

A montanha-russa é a minha vida, a vida é um jogo forte e alucinante, a vida é lançar-se de páraquedas, é arriscar-se, cair e voltar a levantar-se, é alpinismo, é querer subir ao topo de si mesmo, e ficar insatisfeita e angustiada quando não se consegue.

Não é fácil estar longe da minha família, da língua na qual posso expressar todas as minhas emoções e sentimentos, mas a partir de hoje, quando ficar deprimida, vou me lembrar daquele parque de diversões. Se eu tivesse dormido e acordado de repente em uma montanha-russa, o que iria sentir?

Bem, a primeira sensação é a de estar prisioneira,

ficar apavorada com as curvas, querer vomitar e sair dali. Entretanto, se confiar que os trilhos são o meu destino, que Deus está governando a máquina, este pesadelo se transforma em excitação. Ela passa a ser exatamente o que é, uma montanha -russa, um brinquedo seguro e confiável, que vai chegar ao final, mas que, enquanto a viagem dura, me obriga a olhar a paisagem ao redor, gritar de excitação.

Mesmo sendo capaz de escrever coisas que julgava muito sábias, ela não conseguia seguir seus próprios conselhos; os momentos de depressão tornaram-se cada vez mais freqüentes, e o telefone continuava sem tocar. Maria, para distrair-se e exercitar o idioma francês nas horas vagas, começou a comprar revistas de artistas famosos, mas logo descobriu que gastava muito dinheiro com isso e foi procurar a biblioteca mais próxima. A senhora encarregada de emprestar livros disse que ali não alugavam revistas, mas podia lhe sugerir alguns títulos que a ajudariam a dominar o francês cada vez mais.

- Não tenho tempo para ler livros.

- Como não tem tempo? O que está fazendo?

- Muitas coisas: estudando francês, escrevendo um diário e... - E o quê?

Ia dizendo, "esperando que o telefone toque", mas achou melhor ficar calada.

- Minha filha, você é jovem, tem a vida pela frente. Leia. Esqueça o que lhe disseram sobre livros, e leia.

- Já li muito.

De repente, Maria lembrou-se daquilo que o segurança Maílson descrevera certa vez como "energia". A bibliotecária à sua frente parecia alguém sensível, doce, alguém que poderia ajudá-la se tudo o mais falhasse. Precisava conquistá- la, sua intuição dizia que ali podia estar uma possível amiga. Rapidamente mudou de opinião:

- Mas quero ler mais. Por favor me ajude a escolher os livros.

A mulher trouxe O pequeno príncipe. Naquela noite ela começou a folheá-lo, viu os desenhos do início, onde aparecia um chapéu - mas o autor dizia que na verdade, para as crianças, aquilo era uma cobra com um elefante dentro. "Acho que nunca fui criança", pensou consigo mesma. "Para mim, isso parece mais um chapéu." Na ausência da televisão, ela começou a acompanhar o principezinho em suas viagens, embora ficasse triste sempre que o tema "amor" aparecia - havia proibido a si mesma de pensar no assunto, pois se arriscava ao suicídio. Afora as dolorosas cenas românticas entre um príncipe, uma raposa e uma rosa, o livra era muito interessante, e ela não ficou a cada cinco minutos verificando se a bateria do celular estava carregada (morria de medo de que sua chance maior passasse por causa de um descuido).

Maria passou a freqüentar a biblioteca, conversar com a mulher que parecia tão sozinha como ela, pedir sugestões, comentar sobre a vida e os autores - até que seu dinheiro chegou quase ao fim; mais duas semanas e já não teria nem o suficiente para comprar a passagem de volta.

E como a vida sempre espera situações críticas para então mostrar o seu lado brilhante, finalmente o telefone tocou.

Três meses depois de ter descoberto a palavra "advogado", e dois meses depois de estar vivendo da indenização recebida, uma agência de modelos perguntou se a Sra. Maria ainda se encontrava naquele número. A resposta foi um "sim" frio, ensaiado durante muito tempo, para não demonstrar nenhuma ansiedade. Soube então que um árabe, profissional da moda em seu país, gostara muito de suas fotos, e queria convidá-la a participar de um desfile. Maria lembrou-se da decepção recente, mas também do dinheiro de que precisava desesperadamente.

Marcaram o encontro em um restaurante muito chique. Encontrou um senhor elegante, mais encantador e maduro que sua experiência anterior, que lhe perguntou:

- Sabe de quem é aquele quadro ali? De Joan Miró. Sabe quem é Joan Miró?

Maria ficava calada, como se estivesse concentrada na comida, bastante diferente dos restaurantes chineses. Por outro lado, fazia anotações mentais: devia pedir um livro sobre Miró em sua próxima visita à biblioteca.

Mas o árabe insistia:

- Aquela mesa ali era a preferida de Federico Fellini. O que você acha dos filmes de Fellini?

Ela respondeu que adorava. O árabe quis entrarem detalhes e Maria, percebendo que sua cultura não passaria pelo teste, resolveu ir direto ao assunto:

- Não vou ficar aqui representando para o senhor. Tudo que eu sei é a diferença entre uma Coca-cola e uma Pepsi. O senhor não deseja conversar sobre um desfile de modas?

A franqueza da moça pareceu impressioná-lo bem.

- Faremos isso quando formos tomar um drink, depois do jantar.

Houve uma pausa, enquanto os dois se olhavam e imaginavam o que o outro estava pensando.

- Você é muito bonita - insistiu o árabe. - Se resolver tomar um drink comigo em meu hotel, lhe dou mil francos.

Maria imediatamente entendeu. Era culpa da agência de modelos? Era culpa sua, que devia ter perguntado melhor a respeito do jantar? Não era culpa da agência, nem dela, nem do árabe: era assim mesmo que as coisas funcionavam. De repente, sentiu que precisava do sertão, do Brasil, do colo de sua mãe.

Lembrou-se do aviso de Maílson, na praia, quando ele falara em trezentos dólares; naquela época julgara engraçado, acima do que esperava receber por uma noite com um homem. Entretanto, naquele momento, deu-se conta de que não tinha mais ninguém, absolutamente ninguém no mundo com quem pudesse conversar; estava sozinha, em uma cidade estranha, com vinte e dois anos relativamente bem vividos, mas inúteis para ajudá-la a resolver qual seria a melhor resposta.

- Sirva- me mais vinho, por favor.

O árabe colocou mais vinho em seu copo, enquanto o pensamento viajava mais rápido que o Pequeno Príncipe em seu passeio por diversos planetas. Viera em busca de aventura, dinheiro, e talvez um marido, sabia que ia terminar recebendo propostas como essa, porque não era inocente e já se acostumara com o comportamento dos homens. Mas ainda acreditava em agências de modelos, estrelato, um marido rico, família, filhos, netos, roupas, retorno vitorioso à cidade onde nascera. Sonhava em superar todas as dificuldades apenas com a sua inteligência, seu charme, sua força de vontade.

A realidade acabara de desabar em sua cabeça. Para surpresa do árabe, ela começou a chorar. O homem, dividido entre o medo do escândalo e o instinto masculino de proteger a moça, não sabia o que fazer. Fez sinal para o garçom para pedir logo a conta, mas Maria o interrompeu:

- Não faça isso. Sirva- me mais vinho, e deixe- me chorar um pouco.

E Maria pensou no menino que lhe pedira um lápis, no rapaz que a beijara de boca fechada, na alegria de conhecer o Rio de janeiro, nos homens que a tinham usado sem dar nada em troca, nas paixões e nos amores perdidos ao longo de toda a sua caminhada. Sua vida, apesar da aparente liberdade, era um sem- fim de horas esperando um milagre, um amor verdadeiro, uma aventura com o mesmo final romântico que sempre vira nos filmes e lera nos livros. Um autor escrevera que o tempo não transforma o homem, a sabedoria não transforma o homem - a única coisa que pode fazer alguém mudar de idéia é o amor. Que tolice! Quem escreveu aquilo conhecia apenas um lado da moeda.

Realmente, o amor era a primeira coisa capaz de mudar totalmente a vida de uma pessoa de um momento para o outro. Mas existia o outro lado da moeda, aquilo que fazia o ser humano tomar um curso totalmente distinto do que havia planejado: chamava-se desespero. Sim, talvez o amor fosse capaz de transformar alguém; o desespero, no entanto, transforma mais rápido. E agora, Maria? Devia sair correndo, voltar para o Brasil, transformar-se em professora de francês, casar como dono da casa de tecidos? Devia ir um pouco mais adiante, uma só noite, em uma cidade em que não conhecia ninguém e ninguém a conhecia? Será que uma só noite, e o dinheiro tão fácil, a fariam continuar seguindo adiante, até um ponto do caminho de onde não poderia mais voltar? O que estava acontecendo naquele minuto: uma grande oportunidade, ou um teste da Virgem Maria?

Os olhos do árabe passeavam pelo quadro de Joan Miró, pelo lugar onde Fellini comia, pela moça que guardava os casacos, pelos clientes que entravam e os que saíam.

- Você não sabia?

- Mais vinho, por favor - foi a resposta de Maria, ainda entre lágrimas.

Rezava para que o garçom não se aproximasse e descobrisse o que estava acontecendo - e o garçom, que assistia a tudo a distância com o rabo do olho, rezava para que o homem com a garota pagasse logo a conta, porque o restaurante estava repleto e havia gente esperando.

Finalmente, depois do que parecia ser uma eternidade, ela falou:

- Você disse um drink por mil francos?

A própria Maria estranhou o tom de sua voz.

- Sim - respondeu o árabe, já arrependido de ter feito a proposta. - Mas eu não quero de maneira nenhuma...

- Pague a conta. Vamos tomar este drink no seu hotel.

De novo, parecia uma estranha para si mesma. Até então fora uma moça gentil, educada, alegre, e jamais teria usado este tom de voz com um estranho. Mas parecia que aquela moça havia morrido para sempre: diante dela estava uma outra existência, onde os drinks custavam mil francos, ou, em uma moeda mais universal, em torno de seiscentos dólares.

E tudo ocorreu exatamente conforme o esperado: foi para o hotel com o árabe, bebeu champanha, embriagou-se quase que completamente, abr iu as pernas, esperou que ele tivesse um orgasmo (não lhe ocorreu fingir que também quisesse um), lavou-se no banheiro de mármore, pegou o dinheiro, e deu-se ao luxo de pagar um táxi até em casa.

Atirou-se na cama e dormiu uma noite sem sonhos.

 

 

Do diário de Maria, no dia seguinte:

Lembro-me de tudo, menos do momento em que tomei a decisão. Curiosamente, não tenho nenhum sentimento de culpa. Antes costumava ver as meninas que iam para a cama por dinheiro como gente a quem a vida não tinha deixado nenhuma escolha - e agora vejo que não é assim. Eu podia dizer "sim"; ou "não", ninguém estava me forçando a aceitar nada.

Ando pelas ruas, olho as pessoas, será que elas escolheram suas próprias vidas? Ou será que elas também, como eu, foram "escolhidas" pelo dest ino? A dona de casa que sonhava em ser modelo, o executivo de banco que pensou em ser músico, o dentista que tinha um livro escondido e gostaria de dedicar-se à literatura, a menina que adoraria trabalhar na televisão, mas tudo que encontrou foi um emprego de caixa de supermercado.

Não tenho a menor pena de mam mesma. Continuo não sendo uma vítima, porque podia ter saído do restaurante com a minha dignidade intacta e a minha carteira vazia. Podia ter dado lições de moral àquele homem à minha frente, ou tentado fazê- lo ver que diante de seus olhos estava uma princesa, era melhor conquista- la que compra- la. Podia ter tomado um sem-número de atitudes, entretanto - como a maioria dos seres humanos deixei que o destino escolhesse que rumo tomar.

Não sou a única, embora o meu destino pareça mais ilegal e marginal que o dos outros. Mas, na busca da felicidade, estamos todos empatados: o executivo/ músico, o dentista/escritor, a caixa/atriz, a dona de casa/modelo, nenhum de nós é feliz.

Então é isso? Era fácil assim? Estava em uma cidade estranha, não conhecia ninguém, o que ontem era um suplício hoje lhe dava uma imensa sensação de liberdade, não precisava dar explicações a ninguém.


Date: 2015-12-17; view: 725


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