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Agradecimentos especiais a Klaus. 2 page

- Além do mais - continuou -, o senhor não pode deixar a loja assim, sem uma pessoa de confiança tomando conta.

- Não me chame de senhor - disse ele, e Maria reparou em seus olhos aquilo que já conhecia: o fogo da paixão. Isso a surpreendeu, porque achava que aquele homem estava apenas interessado em sexo; entretanto, seu olhar dizia exatamente o oposto : "Posso lhe dar uma casa, uma família, e algum dinheiro para seus pais." Pensando no futuro, resolveu alimentar a fogueira.

Disse que iria sentir muita falta daquele emprego que tanto amava, das pessoas com quem adorava conviver (fez questão de não mencio nar ninguém em particular, deixando no ar o mistério: será que "as pessoas" se referia a ele?), e prometia tomar muito cuidado com sua carteira e sua integridade. A verdade era outra: não queria que ninguém, absolutamente ninguém, estragasse aquela que seria sua primeira semana de total liberdade. Gostaria de fazer tudo - tomar banho de mar, conversar com estranhos, olhar vitrines de lojas, e estar disponível para que um príncipe encantado aparecesse e a raptasse para sempre.

- O que é uma semana, afinal? - disse com um sorriso sedutor, torcendo para que estivesse errada. - Passa rápido, e em breve estarei de volta, cuidando de minhas responsabilidades.

O chefe, desconsolado, lutou um pouco mas terminou aceitando, pois àquela altura já estava fazendo planos secretos de pedi-Ia em casamento assim que voltasse, e não queria ser afoito demais e estragar tudo.

Maria viajou quarenta e oito horas de ônibus, hospedou-se em um hotel de quinta categoria em Copacabana (ah, Copacabana! Esta praia, este céu...), e antes mesmo de desfazer as malas, agarrou um biquíni que havia comprado, colocou-o, e mesmo com o tempo nublado, foi para a praia. Olhou o mar, sentiu pavor, mas terminou entrando em suas águas, morrendo de vergonha.

Ninguém na praia notou que aquela menina estava tendo seu primeiro contato com o oceano, a deusa Iemanjá, as correntes marítimas, a espuma das ondas, e a costa da África com seus leões, do outro lado do Atlântico. Quando saiu da água, foi abordada por uma mulher que vendia sanduíches naturais, um belo negro que lhe perguntou se estava livre para sair naquela noite, e um homem que não falava uma só palavra em português, mas que fazia gestos e a convidava para tomar uma água de coco.

Maria comprou o sanduíche porque teve vergonha de dizer "não", mas evitou falar com os outros dois estranhos. De um momento para o outro, ficou triste; afinal, agora que tinha todas as possibilidades de fazer tudo o que queria, por que agia de maneira absolutamente reprovável? Na falta de uma boa explicação, sentou-se para esperar que o sol surgisse por trás das nuvens, ainda surpresa com sua própria coragem, e com a temperatura da água, tão fria em pleno verão.



O homem que não falava português, entretanto, apareceu ao seu lado com um coco, e lhe ofereceu. Contente de não ser obrigada a conversar com ele, ela bebeu a água do coco, sorriu, e ele sorriu de volta. Por algum tempo, ficaram naquela confortável comunicação que não quer dizer nada - sorriso para cá,

sorriso para lá -, até que o homem tirou um pequeno dicionário de capa vermelha do bolso e disse, com um sotaque estranho: "bonita". Ela sorriu de novo; bem que gostaria de encontrar o seu príncipe encantado, mas ele deveria falar sua língua e ser um pouco mais jovem.

O homem insistiu, folheando o livrinho:

-Jantar hoje?

E logo comentou:

- Suíça!

Completando com palavras que soam como sinos do paraíso, em qualquer língua em que sejam pronunciadas:

- Emprego! Dólar!

Maria não conhecia o restaurante Suíça, mas será que as coisas eram assim tão fáceis, e os sonhos se realizavam tão depressa? Melhor desconfiar: muito obrigada pelo convite, estou ocupada, e tampouco estava interessada em comprar dólares.

O homem, que não entendeu uma só palavra de sua resposta, começou a ficar desesperado; depois de muitos sorrisos para cá, sorrisos para lá, deixou-a por alguns minutos, voltando logo com um intérprete. Por intermédio dele, explicou que vinha da Suíça (não era um restaurante, era o país), e que gostaria de jantar com ela, pois tinha uma oferta de emprego. O intérprete, que se apresentara como assessor do estrangeiro e segurança do hotel onde o homem estava hospedado, acrescentou por sua conta:

- Se fosse você, aceitava. Este homem é um importante empresário artístico, e veio descobrir novos talentos para trabalhar na Europa. Se quiser, posso lhe apresentar outras pessoas que aceitaram o convite, ficaram ricas, e hoje estão casadas e com filhos que não precisam enfrentar assaltos ou problemas de desemprego.

E, completou, tentando impressioná- la com sua cultura internacional: relógios.

- Além do mais, na Suíça fazem excelentes chocolates e

A experiência artística de Maria se resumia a representar uma vendedora de água -

que entrava muda e saía calada - na peça sobre a Paixão de Cristo que a prefeitura sempre encenava durante a Semana Santa. Não tinha conseguido dormir direito no ônibus, mas estava excitada com o mar, cansada de comer sanduíches naturais e antinaturais, e confusa porque não conhecia ninguém, e precisava encontrar logo um amigo. Já passara por aquele tipo de situação antes, quando um homem promete tudo e não cumpre nada - de modo que sabia que esta história de atriz era apenas uma maneira de tentar interessá- la em algo que fingia não querer.

Mas certa de que a Virgem lhe oferecera aquela chance, convencida de que tinha que aproveitar cada segundo daquela sua semana de férias, e conhecer um bom restaurante significava ter algo muito importante para contar quando voltasse à sua terra, resolveu aceitar o convite - desde que o intérprete a acompanhasse, pois já estava ficando cansada de sorrir e fingir que estava entendendo o que o estrangeiro dizia.

O único problema era também o maior de todos: não tinha roupa adequada. Uma mulher jamais confessa estas intimidades (é mais fácil aceitar que seu marido a traiu do que confessar o estado do seu guarda-roupa), mas como não conhecia aqueles homens, e talvez jamais tornasse a vê- los, resolveu que não tinha nada a perder.

- Acabo de chegar do Nordeste, não tenho roupa para ir a um restaurante.

O homem, por intermédio do intérprete, pediu que não se preocupasse, e solicitou o endereço do seu hotel. Naquela tarde, ela recebeu um vestido como jamais tinha visto em toda a sua vida, acompanhado de um par de sapatos que devia ter custado tanto quanto o que ela ganhava durante o ano.

Sentiu que ali começava o caminho pelo qual tanto ansiara durante a infância e adolescência no sertão brasileiro, convivendo com a seca, os rapazes sem futuro, a cidade honesta mas pobre, a vida repetitiva e sem interesse: estava prestes a transformar-se na princesa do universo! Um homem lhe oferecera emprego, dólar, um par de sapatos caríssimos e um vestido de conto de fadas! Faltava maquiagem, mas a balconista que tomava conta do hotel, solidária, ajudou-a, não sem antes preveni-Ia de que nem todos os estrangeiros são bons, e nem todos os cariocas são assaltantes.

Maria ignorou o aviso, vestiu-se com aquele presente dos céus, ficou horas diante do espelho, arrependida de não ter trazido uma simples máquina fotográfica para registrar o momento, até que finalmente se deu conta de que já estava atrasada para o compromisso.

Saiu correndo, tal qual Cinderela, e foi até o hotel onde o suíço se encontrava.

Para sua surpresa, o intérprete foi logo dizendo que não iria acompanhá- los:

- Não se preocupe com a língua. O important e é ele sentirse bem ao seu lado.

- Mas como, se não vai entender o que eu estou dizendo?

- Justamente por isso. Não precisam conversar, é uma questão de energia.

Maria não sabia o que significava uma "questão de energia". Na sua terra, as pessoas precisavam trocar palavras, frases, perguntas, respostas, sempre que se encontravam. Mas Maílson assim se chamava o intérprete/segurança - garantiu que no Rio de janeiro, e no resto do mundo, as coisas eram diferentes.

- Não precisa entender, apenas procure fazê- lo sentir-se bem. O homem é viúvo, sem filhos, dono de uma boate, e está procurando brasileiras que queiram apresentar-se no exterior. Eu disse que você não fazia o tipo, mas ele insistiu, dizendo que se apaixonara assim que a vira sair da água. Também achou o seu biquíni lindo.

Fez uma pausa.

- Sinceramente, se quiser arranjar namorado aqui, precisa trocar o modelo de biquíni; afora este suíço, acho que ninguém mais no mundo irá gostar; é muito antiquado.

Maria fingiu que não ouvira. Mailson continuou.

- Acho que ele não deseja apenas uma aventura com você; acha que tem talento suficiente para transformar-se na principal atração da boate. Claro que não a viu cantar, nem dançar, mas isso se pode aprender, enquanto a beleza é algo com que se nasce. Esses europ eus são mesmo assim: chegam por aqui, acham que todas as brasileiras são sensuais e sabem sambar. Se ele for sério em suas intenções, aconselho que peça um contrato assinado

- e com firma reconhecida no consulado suíço - antes de sair do país. Amanhã estarei na praia, em frente ao hotel, procureme se tiver alguma dúvida.

O suíço, sorrindo, pegou-a pelo braço e mostrou o táxi que os esperava.

- Se entretanto a intenção dele for outra, e a sua também, o

preço normal de uma noite é de trezentos dólares. Não deixe

por menos. -

Antes que pudesse responder, já estava a caminho do restaurante, com o homem ensaiando as palavras que desejava dizer. A conversa foi muito simples:

- Trabalhar? Dólar? Estrela brasileira?

Maria, entretanto, ainda pensava no comentário do segurança/intérprete: trezentos dólares por uma noite! Que fortuna!

Não precisava sofrer por amor, podia seduzi- lo como fizera com o dono da loja de tecidos, casar, ter filhos e dar uma vida confortável aos pais. O que tinha a perder? Ele era velho, talvez não demorasse muito a morrer, e ela ia ficar rica - afinal, parecia que os suíços tinham muito dinheiro e poucas mulheres em sua terra.

Jantaram sem conversar muito - sorriso para cá, sorriso para lá, Maria entendendo aos poucos o que era "energia" -, e o homem lhe mostrou um álbum com várias coisas escritas em uma língua que não conhecia; fotos de mulheres de biquíni (sem dúvida, melhores e mais ousados do que o que estava usando aquela tarde), recortes de jornais, folhetos espalhafatosos em que tudo que entendia era a palavra "Brazil", escrita errado (afinal, na escola não lhe ensinaram que se escrevia com "S"?). Bebeu muito, com medo de que o suíço lhe fizesse uma proposta (afinal, embora jamais tivesse feito isso na vida, ninguém pode desprezar trezentos dólares, e com um pouco de álcool as coisas ficam muito mais simples, principalmente se ninguém de sua cidade está por perto). Mas o homem comportou-se como um cavalheiro, inclusive puxando a cadeira na hora em que ela se sentou e levantou. No final, disse que estava cansada e marcou um encontro na praia no dia seguinte (apontar o relógio, mostrar a hora, fazer com as mãos o movimento das ondas do mar, dizer "a-ma- nhã" bem devagar).

Ele pareceu satisfeito, olhou também para o relógio (possivelmente suíço) e concordou com a hora.

Não dormiu direito. Sonhou que tudo era um sonho. Acordou e viu que não era: havia um vestido na cadeira do quarto modesto, um belo par de sapatos, e um encontro na praia.

Do diário de Maria, no dia em que conheceu o suíço:

Tudo me diz que estou prestes a tomar uma decisão errada, mas os erros são uma maneira de agir. O que o mundo quer de mim? Que não corra meus riscos? Que volte de onde vim, sem coragem de dizer "sim" para a vida?

Já agi errado quando tinha onze anos, e um menino veio me pedir um lápis emprestado; desde então, entendi que às vezes não existe uma segunda oportunidade, é melhor aceitar os presentes que o mundo oferece. Claro que é arriscado, mas será que o risco é maior do que um acidente no ônibus que levou quarenta e oito horas para me trazer até aqui? Se tenho que ser fiel a alguém ou a alguma coisa, em primeiro lugar tenho que ser fiel a mim mesma. Se busco o amor verdadeiro, antes preciso ficar cansada dos amores medíocres que encontrei. A pouca experiência de vida me ensinou que ninguém é dono de nada, tudo é uma ilusão - e isso vai dos bens materiais aos bens espirituais. Quem já perdeu alguma coisa que tinha como garantida (algo que já me aconteceu tantas vezes) termina por aprender que nada lhe pertence.

E se nada me pertence, tampouco preciso gastar meu tempo cuidando das coisas que não são minhas; melhor viver como se hoje fosse o primeiro (ou o último) dia da minha vida.

ÇXo dia seguinte, junto com Maílson, o intérprete/segurança, agora se dizendo seu empresário, disse que aceitava o convite, desde que tivesse um documento fornecido pelo consulado suíço. O suíço, que parecia acostumado a tal tipo de exigência, afirmou que aquilo também era desejo seu, já que, para trabalhar na sua terra, uma estrangeira deveria provar que tinha uma ocupação que nenhuma nativa pudesse exercer. Não seria difícil conseguir isso, já que as suíças não tinham grande aptidão para o samba. Foram juntos até o centro da cidade. O segurança/intérprete/empresário exigiu um adiantamento em dinheiro vivo assim que assinaram o contrato, e ficou com 30% dos quinhentos dólares recebidos.

- Isso é uma semana de adiantamento. Uma semana, você entende? Irá ganhar quinhentos dólares por semana, limpos, porque só recebo comissão no primeiro pagamento!

Até aquele momento, as viagens, a idéia de ir para longe, tudo parecia um sonho - e sonhar é muito confortável, desde que não sejamos obrigados a fazer aquilo que planejamos. Assim, não passamos por riscos, frustrações, momentos difíceis, e quando ficarmos velhos, poderemos sempre culpar os outros nossos pais, de preferência, ou nossos maridos, ou nossos filhos - por não termos realizado aquilo que desejávamos.

De repente, ali estava a chance que Maria tanto esperava, mas que torcia para que não chegasse nunca! Como enfrentar os desafios e perigos de uma vida que ela não conhecia?

Como abandonar tudo aquilo a que estava acostumada? Por que a Virgem decidira ir tão longe?

Maria consolou-se com o fato de que podia mudar de idéia a qualquer momento, tudo não passava de uma brincadeira irresponsável - algo diferente para contar quando voltasse a sua terra. Afinal de contas, morava a mais de mil quilômetros dali, tinha agora trezentos e cinqüenta dólares na carteira, e se amanhã resolvesse fazer as malas e fugir, eles jamais conseguiriam saber onde havia se escondido.

Na tarde em que foram ao consulado, ela resolveu passear sozinha pela beira do mar, olhando as crianças, os jogadores de vôlei, os mendigos, os bêbados, os vendedores de artesanato típico brasileiro (fabricado na China), os que corriam e faziam exercícios para afugentar a velhice, os turistas estrangeiros, as mães com seus filhos, os aposentados jogando baralho no final da orla. Tinha vindo ao Rio de janeiro, conhecera um restaurante de primeiríssima classe, um consulado, um estrangeiro, arrumara um empresário, ganhara de presente um vestido e um par de sapatos que ninguém -absolutamente ninguém - em sua terra poderia comprar.

E agora?

Olhou para o outro lado do mar: sua lição de geografia afirmava que, se seguisse em linha reta, iria chegar à África, com seus leões e suas selvas cheias de gorilas. Entretanto, se andasse um pouco para o norte, terminaria colocando os pés no reino encantado chamado Europa, onde existia a torre Eiffel, a Disneylândia européia, e a torre inclinada de Pisa. O

que tinha a perder? Como qualquer brasileira, aprendera a sambar antes mesmo de dizer

"mamãe"; poderia voltar se não gostasse, e já aprendera que as oportunidades são feitas para serem aproveitadas.

Passara grande parte do seu tempo dizendo "não" a coisas a que gostaria de dizer

"sim", decidida a viver apenas as experiências que sabia controlar -como certas aventuras com homens, por exemplo. Agora estava diante do desconhecido, tão desconhecido como este mar fora uma vez para os navegadores que o cruzaram, assim lhe haviam ensinado na aula de história. Podia dizer sempre "não", mas será que iria passar o resto da vida lamentando-se, como ainda fazia com a imagem do menino que uma vez lhe pedira um lápis e desaparecera com seu primeiro amor? Sempre poderia dizer "não", mas por que desta vez não ensaiar um "sim"?

Por uma razão muito simples: era uma moça do interior, sem qualquer experiência na vida além de um bom colégio, uma grande cultura de novelas de televisão, e a certeza de que era bela. Isso não bastava para enfrentar o mundo.

Viu um grupo de pessoas rindo e olhando o mar, com medo de se aproximarem. Dois dias antes, ela sentira a mesma coisa, mas agora não tinha medo, entrava na água sempre que desejava, como se tivesse nascido ali. Será que não iria acontecer a mesma coisa na Europa?

Fez uma prece silenciosa, pediu de novo os conselhos da Virgem Maria, e segundos depois parecia à vontade com sua decisão de seguir adiante, porque se sentia protegida.

Sempre poderia voltar, mas nem sempre teria a chance de ir tão longe. Valia a pena correr o risco, desde que o sonho conseguisse resistir às quarenta e oito horas de volta no ônibus sem ar refrigerado, e desde que o suíço não mudasse de idéia.

Estava tão animada que, quando ele a convidou para jantar novamente, quis ensaiar um ar sensual, e pegou a mão dele, mas o homem logo a retirou. Maria entendeu - com certo medo, e com certo alívio - que ele realmente estava falando sério.

- Estrela samba! - dizia o homem. - Linda estrela samba brasileiro! Viagem semana próxima!

Tudo era uma maravilha, mas "viagem semana próxima" estava absolutamente fora de cogitação. Maria explicou que não podia tomar uma decisão sem consultar sua família.

O suíço, furioso, mostrou uma cópia do documento assinado, e pela primeira vez ela sentiu medo.

- Contrato! - dizia ele.

Mesmo decidida a viajar, resolveu consultar Maílson, seu empresário - afinal de contas, ele estava sendo pago para assessorá- la.

Maílson, entretanto, parecia agora mais preocupado em seduzir uma turista alemã que acabara de chegar ao hotel e estava fazendo topless na areia, certa de que o Brasil é o país mais liberal do mundo (sem dar-se conta de que era a única pessoa com os seios expostos e que todos os demais a olhavam com um certo desconforto). Foi uma dificuldade conseguir que prestasse atenção no que estava dizendo.

- E se eu mudar de idéia? - insistia Maria.

- Não sei o que está escrito no contrato, mas talvez ele mande prendê- la.

- Não irá me achar nunca!

- Tem razão. Portanto, não se preocupe.

O suíço, porém, que já gastara quinhentos dólares, um par de sapatos, um vestido, dois jantares e os custos de cartório no consulado, estava começando a ficar preocupado, de modo que, como Maria insistia na necessidade de falar com sua família, resolveu comprar duas passagens de avião e acompanhá - la até o lugar onde nascera - desde que tudo se resolvesse em quarenta e oito horas e pudessem viajar na semana seguinte, conforme o combinado. Com sorrisos para cá, sorrisos para lá, ela começava a entender que isso constava do documento, e que não se deve brincar muito com a sedução, os sentimentos, e os contratos.

Foi uma surpresa, e um orgulho para a pequena cidade, ver sua bela filha Maria chegar acompanhada de um estrangeiro, que desejava convidá- la para ser uma grande estrela na Europa. Toda a vizinhança soube, e as amigas de colégio perguntavam: "Mas como foi?"

"Eu tenho sorte."

Elas queriam saber se isso sempre acontecia no Rio de janeiro, porque tinham visto novelas na televisão com episódios semelhantes. Maria não disse sim nem não, para valorizar sua experiência e convencer suas amigas de que ela era uma pessoa especial.

Foram até sua casa, onde o homem mostrou de novo os folhetos, o Brazil (com Z), o contrato, enquanto Maria explicava que agora tinha um empresário e pretendia seguir uma carreira artística. A mãe, olhando o tamanho do biquíni das moças nas fotos que o estrangeiro lhe apresentava, devolveu-as imediatamente e não quis fazer perguntas - tudo que lhe importava é que sua filha fosse feliz e rica, ou infeliz - mas rica.

- Como é o nome dele?

- Roger.

- Rogério! Eu tinha um primo com esse nome!

O homem sorriu, bateu palmas, e todos se deram conta de que ele não tinha entendido a pergunta. O pai comentou com Maria:

- Mas ele tem a minha idade.

A mãe pediu que ele não interferisse na felicidade da filha. Como todas as costureiras conversam muito com suas clientes, e terminam ganhando uma grande experiência em matéria de casamento e amor, ela aconselhou:

- Minha adorada, melhor ser infeliz com um homem rico, que ser feliz com um homem pobre, e lá longe você tem muito mais chance de ser uma rica infeliz. Além do mais, se nada der certo, você toma um ônibus e volta para casa.

Maria, uma moça do interior, mas com uma inteligência maior do que sua mãe ou seu futuro marido imaginavam, insistiu apenas para provocar:

- Mamãe, não existe ônibus da Europa para o Brasil. Além do mais, quero ter uma carreira artística, não estou procurando casamento.

A mãe olhou para a filha com um ar quase desesperado:

- Se dá para você chegar lá, também dá para sair. As carreiras artísticas são muito boas para moças jovens, mas só duram enquanto você for bela, e isso termina mais ou menos aos trinta anos. Portanto aproveite, encontre alguém que seja honesto, apaixonado, e por favor se case. Não precisa pensar muito em amor, no início eu não amava seu pai, mas o dinheiro compra tudo, até amor verdadeiro. E olha que seu pai nem rico é!

Era um péssimo conselho de amiga, mas um excelente conselho de mãe. Quarenta e oito horas depois Maria estava de volta ao Rio, não sem antes ter passado - sozinha - pelo seu antigo emprego, pedido demissão e escutado do dono da loja de tecidos:

- Soube que um grande empresário francês resolveu levá - la para Paris. Não posso impedi- la de perseguir sua felicidade, mas quero que, antes de ir embora, saiba de uma coisa.

Tirou do bolso um cordão com uma medalha.

- Trata-se da Medalha Milagrosa de Nossa Senhora das Graças. Sua igreja fica em Paris, de modo que vá até lá e peça proteção a ela. Veja o que está escrito aqui.

Maria viu que, em torno da Virgem, havia algumas palavras: "Oh, Maria, concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a Vós. Amém."

- Não deixe de dizer esta frase pelo menos uma vez por dia. E... - Ele hesitou, mas agora era tarde. - ... se algum dia você voltar, saiba que a estarei esperando. Perdi a oportunidade de dizer uma coisa tão simples: "eu te amo". Talvez seja tarde, mas gostaria que soubesse disso.

"Perder a oportunidade", ela havia aprendido muito cedo o que isso significava. "Eu te amo", porém, era uma frase que havia escutado muitas vezes ao longo de seus vinte e dois anos, e parecia que já não tinha mais nenhum sentido - porque nunca resultara em algo sério, profundo, que se traduzisse em uma relação duradoura. Maria agradeceu as palavras, anotou-as em seu subconsciente (nunca se sabe o que a vida nos preparou, e é sempre bom saber onde se encontra a saída de emergência), deu um casto beijo no rosto do ex-patrão e partiu sem olhar para trás.

Voltaram para o Rio, e em apenas um dia ela conseguiu seu passaporte (o Brasil realmente havia mudado, comentara Roger com algumas palavras em português e muitos sinais, que Maria traduziu como "antigamente demorava muito"). Aos poucos, com a ajuda de Maílson, o intérprete/segurança/empresário, as providências restantes foram tomadas (roupas, sapatos, maquiagem, tudo que uma mulher como ela podia sonhar). Roger a viu dançar em uma boate que visitaram na véspera da viagem para a Europa, e ficou entusiasmado com sua escolha -realmente estava diante de uma grande estrela para o cabaré Cologny, a bela morena de olhos claros e cabelos negros como as asas da graúna (um pássaro brasileiro, com que os escritores da terra costumam comparar os cabelos negros). A certidão de trabalho do consulado suíço ficou pronta, fizeram as malas, e no dia seguinte estavam viajando para a terra do chocolate, do relógio e do queijo, com Maria secretamente planejando fazer aquele homem apaixonar-se por ela - afinal de contas ele não era tão velho, nem feio, nem pobre. Que mais desejar?

Chegou exausta e, ainda no aeroporto, seu coração apertou de medo: descobriu que estava completamente dependente do homem ao seu lado - não conhecia a terra, a língua, o frio. O comportamento de Roger ia mudando à medida que as horas se passavam; já não tentava ser agradável, e embora jamais tentasse beijá-la ou tocar seus seios, seu olhar tinha se tornado o mais distante possível. Colocou-a em um pequeno hotel, apresentandoa a outra brasileira, uma mulher jovem e triste chamada Vivian, que se encarregaria de prepará-la para o trabalho.

Vivian a olhou de cima a baixo, sem a menor cerimônia ou o menor carinho por quem está tendo sua primeira experiência no exterior. Em vez de perguntar como se sentia, foi direto ao assunto.

- Não tenha ilusões. Ele vai ao Brasil sempre que alguma de suas dançarinas se casa, e pelo visto isso está acontecendo com muita freqüência. Ele sabe o que quer, e acredito que você também saiba, deve ter vindo em busca de uma das três coisas: aventur a, dinheiro ou marido.


Date: 2015-12-17; view: 750


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